As origens da Maçonaria especulativa

Para pesquisar este complexo tema faz-se necessário examinar algumas lendas enraizadas no imaginário maçónico, para as quais não existe nenhuma comprovação documental.

A primeira delas descreve o nascimento da Maçonaria Especulativa como sendo a descendente directa da Guilda de Ofício correspondente, que teria deixado entrar os não operativos ou aceites nas suas Lojas.

Estes novos membros acabariam por dominar a guilda de ofício, não só em número, mas também na sua administração, transformando-a na organização maçónica que conhecemos a partir de 1717.

Sem dúvida, a Maçonaria moderna muito deve à instituição chamada de Venerável Companhia dos Maçons Livres da Cidade de Londres, como era chamada nos documentos oficiais, a corporação que reunia os que praticavam a arte de construir. Não é sem razão que a instituição actual é a sua sucessora, quase sem mudanças, no nome e em muitos dos seus princípios de governo.

A Maçonaria actual herdou nos nomes dos Oficiais e Dignitários mais importantes, o método de auto-sustentação financeira, a taxa de admissão, e outros usos, A bem da verdade, estes usos eram típicos de todas as corporações medievais; entretanto, tudo isto não explica porquê os não operativos teriam solicitado a sua admissão, especificamente nesta corporação de ofício.

Uma explicação inicial, que Anderson foi buscar na antiguidade, consistiria no facto de que a admissão à corporação era atractiva em termos de “status social”, ou seja, por ser um ”símbolo de distinção”, como actualmente o é a admissão em associações do tipo Rotary ou Lions Clubs.

Assim sendo, tratar-se-ia da atracção que uma Companhia de Ofício, rica e poderosa, teria exercido sobre os homens que profissionalmente não pertenciam à corporação. Na realidade, isto é altamente improvável. De facto, devemos considerar que já no início do séc. XVII a Companhia de Ofício tinha perdido toda a sua importância e poder efectivo (causada pela falta de grandes obras, geralmente patrocinadas pela Igreja, cujo prestígio e poder económico estava em decadência e já não era o mesmo da alta Idade Média).

Qual seria então a atracção que uma corporação em declínio poderia exercer sobre homens em busca de realizar as suas ambições sociais?

Uma segunda explicação sustenta que os não operativos foram atraídos para a corporação devido aos segredos esotéricos que esta possuía. Aqui também, devemos ressaltar que não existe nenhum documento das lojas operativas que ateste a existência de qualquer tipo de mistério que não fosse aquele ligado aos segredos de profissão, do mesmo tipo que se podem encontrar em qualquer outra corporação do género.

A propósito, recordamos a suposta existência, na Inglaterra, de um grupo da chamada sobrevivência operativa, com um ritual com sete graus, que dividiam os Irmãos conforme o grau, em maçons do esquadro e maçons do arco, hipótese tão cara a René Guénon, o que é uma mistificação que apareceu e logo desapareceu no início do séc. XX.

No que se refere à assim chamada Compagnonage, organização que só existiu na França, e na qual os Maçons não tinham a predominância, sabe-se que a sua parte ritual e esotérica é posterior à da Maçonaria Especulativa.

Quanto aos famosos Mestres Comacinos, não existem documentos que atestem que tenham existido sob a forma de corporação. Os éditos longobardos que os mencionam são dos séc. VII e VIII, enquanto que os sistemas corporativos, com os seus juramentos, só aparecem no início do séc. XII (O Estatuto de Bolonha, de 1248). Os artigos dos éditos de Rotari e de Luitprando, falam somente dos regulamentos a serem aplicados nos casos de eventuais acidentes no exercício da profissão de construtor. Falam também das compensações a serem atribuídas aos acidentados ou às suas famílias. Por outro lado, não se encontra nestes éditos nada que possa sugerir algo de misterioso ou de esotérico na profissão dos Mestres Comacinos.

Também não é conhecido nenhum documento medieval das Guildas de Ofício que mencione qualquer forma de ensinamento esotérico, partilhado pelos seus membros. Especificamente em relação à Inglaterra, ninguém que já tenha lido os manuscritos Regius, Cooke, etc. encontrou neles quaisquer segredos, a não ser os relativos à profissão, a par de uma forte influência cristã, além da atenção dispensada aos problemas práticos, económicos e referentes à administração do pessoal operativo.

Assim sendo, não se conhece nenhum documento que contenha referências àqueles que são os pontos fundamentais do esoterismo maçónico actual, ou seja: Palavras, Sinais, Toques, a Lenda do Terceiro Grau ou similares. Na realidade, todos os documentos afirmam exactamente o oposto, isto é, que só depois do ingresso dos membros não operativos, no séc. XVII, foi que começaram a encontrar-se indícios de que algo misterioso estava acontecendo no interior da corporação. A propósito, mencionamos algumas datas:

Já nos anos de 1520/21 os registos contabilísticos da corporação mencionam pagamentos efectuados por alguns membros e oficiais operativos, que tinham sido feitos maçons aceites. É de ressaltar que nesta altura alguns membros aceites eram já membros “activos e quotistas” da Corporação de Ofício (embora a primeira admissão oficial, na Saint Mary’s Chapell Lodge, só tenha sido registada em 1600).

Deste modo, estamos diante de acontecimentos exactamente opostos àqueles que sempre se supôs acontecerem, isto é, que são os membros operativos que são admitidos entre os Aceites, e não o inverso. De tal facto, podemos supor a existência de uma estrutura organizada e independente. Assim, fazer parte da organização operativa não significava pertencer automaticamente à organização especulativa.

Outro facto significativo é que nos anos de 1655/56 a Companhia de Ofício decidiu retirar a palavra “freemasons” (Pedreiros Livres) do seu título, passando a chamar-se somente Companhia dos Maçons. Este facto permite supor que a mudança no nome da Companhia de Ofício visava oferecer cobertura a uma nova organização surgida no seu interior.

O certo é que os primeiros sinais dos não operativos são todos posteriores ao início do séc. XVII. Na Escócia, em Edimburgo, os primeiros sinais aparecem em 1634. Em Atchison”s Haven, em 1672, 1677 1693. Em Kilwinning, em 1672 e em Aberdeen, em 1670. Na Inglaterra, já em 1621 os registos comprovam a existência de uma Sociedade de Maçons, em conjunto com a corporação de ofício regular. Esta nova sociedade recebia capitações dos maçons Aceites, tanto dos construtores de ofício, quanto dos que não tinham nenhuma relação com a profissão.

Deste modo, pode-se perfeitamente admitir que durante o séc. XVII tenha sido constituída uma fraternidade oculta, dentro da corporação profissional. Os seus membros ditos Aceites seriam os efectivos possuidores do esoterismo e da maior parte da ritualidade que nos é hoje conhecida. Os membros desta nova fraternidade foram gradativamente assumindo a sua condição maçónica perante o público externo, a partir da segunda metade do mesmo século.

A partir deste ponto, devemos procurar as origens deste novo grupo, a possível data da sua constituição, o seu conteúdo filosófico e esotérico, os seus fundadores, e o motivo pelo qual decidem ocultar-se dentro da corporação dos construtores.

Todos os pesquisadores concordam em que o esoterismo maçónico, com a sua tradução em rituais, símbolos e ensinamentos, é uma criação desenvolvida ao longo de algumas dezenas de anos, e é obra dos Especulativos. Quem seriam os homens que possuíam este tipo de conhecimentos ? Sem dúvida, eram homens de condição social média/alta, pertencentes à burguesia iluminada e que, nos dias de hoje, poderiam ser chamados de “liberais”.

Eram pesquisadores e estudiosos das culturas da antiguidade, coleccionadores de manuscritos e de livros raros. Muitos tornaram-se membros da Sociedade Real (Royal Society). Fazia também parte do seu projecto social a difusão do conhecimento científico, visando melhorar as condições de vida das populações mais humildes. Sob o ponto de vista religioso, numa época conturbada da história da Europa ( a Inquisição ) estes homens manifestavam uma forte tendência para a tolerância, a partir de um forte teísmo do tipo judaico-cristão.

Características muito importantes são as relações que muitos deles tinham com os sobreviventes do movimento Rosa-cruz da Alemanha, que se refugiaram na Inglaterra depois da dissolução do reino da Boémia, em 1619. Os primeiros documentos que atestam a existência dos Aceites, são datados de dois anos depois, isto é, de 1621. Deve-se notar que a Inglaterra era, na Europa de então, o único país que os colocaria a salvo dos processos e dos autos de fé da Inquisição Católica.

Mesmo na Inglaterra a situação político-religiosa estava em transição, e ainda era bastante perigosa a divulgação dos conhecimentos esotéricos, filosóficos e sociais que os tinham inspirado. Nestas condições, era bastante atraente a oportunidade de se ocultarem dentro da organização, de modo a resguardar a permanência do conhecimento não ortodoxo, bem como a sua transmissão, de modo velado. O simbolismo geométrico-arquitectónico era utilizado para exprimir o conteúdo do conhecimento esotérico e filosófico.

Assim, nada melhor para assegurar a continuidade da transmissão velada deste conhecimento do que a utilização de uma corporação de ofício, em declínio e de fácil manejo. Deste modo, a mensagem rosa-cruz foi introduzida na corporação dos maçons operativos ingleses, com a criação de rituais que asseguraram a sua sobrevivência e a sua transmissão futura.

Como já dito, estes rituais – Aprendiz e Companheiro – foram sendo desenvolvidos durante todo o séc. XVII e início do séc. XVIII. Não se conhecem com exactidão as datas em que foram concluídos estes rituais, por dois motivos:

em primeiro lugar, os rituais não eram escritos.
Em segundo lugar, porque eram escassos os registos das reuniões das Lojas. Os registos existentes das reuniões deste período referem-se, basicamente, aos aspectos administrativos das reuniões. Jamais, em relação aos aspectos ritualísticos.
A mensagem rosa-cruz tinha duas componentes: uma exotérica e outra esotérica. A primeira é facilmente reconhecida, e ainda hoje é uma das colunas de apoio do ensino maçónico. Propõe a tolerância religiosa, a acção social em favor dos necessitados, a difusão da cultura, a preferência pelos sistemas democráticos de governo, a aversão por toda a forma de despotismo, o compromisso com o social em todas as suas formas, e a obrigação de manter um comportamento ético irrepreensível.

A componente esotérica e metafísica começa a ser conhecida com o aparecimento dos Aceites. Inicialmente, tem-se conhecimento da expressão “Palavra Maçónica”, cujo significado era desconhecido, e cujo segredo os Aceites defendiam de maneira quase feroz. A este respeito, Henry Adamson escreveu em 1638: “Nós temos a Palavra Maçónica e a segunda vista”. Henry Home expressava-se assim em 1640:

“Existem muitas palavras e sinais Maçónicos que vos serão revelados e de cujo segredo vos pedirei contas diante de Deus, no grande e terrível dia do Juízo Final. Deveis manter sempre o segredo sem revelá-lo a ninguém, a não ser aos mestres e companheiros da Sociedade dos Maçons”.

Além disso, encontramos referências nos juramentos de que esta Palavra jamais devia ser escrita, nem sequer na areia, sob pena de terríveis punições. Assim, parece certo que esta palavra devia consistir de algum tipo de conhecimento que nunca foi revelado. Neste ponto, é inequívoca a influência rosa-cruz.

Vejamos ainda alguns pontos que ajudarão nas nossas conclusões. Sem imitar o trapalhão Ragon, analisemos as características do Maçom aceite mais conhecido do séc. XVII. Referimo-nos a Elias Ashmole, iniciado em Warrington a 16 de Outubro de 1646, aos 29 anos, como consta no seu próprio diário, no qual o termo usado não é “iniciado”, mas “aceite”. Noutro dos seus diários ele escreveu, a 13 de Maio de 1653, que o seu padrinho na Ordem, o senhor Blackhouse, lhe revelou no leito de morte, por sílabas, o nome da matéria da Pedra Filosofal. Em 1663, Ashmole tornou-se membro da Sociedade Real.

O segundo ponto a ressaltar consiste nas frequentes referências, nos rituais, à assim chamada Lenda Críptica e às suas conexões com o simbolismo do Templo de Salomão. Convém lembrar que o ritual maçónico do grau de Aprendiz, praticamente na forma em que o conhecemos, foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo da segunda metade do séc. XVII e, provavelmente nas primeiras décadas do século seguinte.

Devemos também lembrar que a definição de Deus como Grande Arquitecto do Universo não é, como se poderia pensar, de origem maçónica, mas sim de uma antiga versão de uma lenda Alquímico / Rosa-cruz. L”Andréa, conhecido por ter divulgado os Manifestos Rosacruzes em Londres, já usa esta expressão num trabalho de 1623. Portanto, muito antes do desenvolvimento dos rituais maçónicos.

No que se refere ao sistema ritual que contém o Real Arco, muito apreciado pelos maçons, deve-se ressaltar que a lenda críptica é repetida, em várias versões, e que as referências alquímicas nos graus superiores ao terceiro são bastante explícitas, sem esquecer que um dos graus mais importantes do sistema é o Príncipe Rosa-Cruz.

Os argumentos acima expostos permitem concluir que o ensinamento dos Aceites tem por base os conhecimentos alquímicos dos Rosa-Cruzes, com todas as suas consequências filosóficas e metafísicas.

Assim, concluímos também que o conhecimento esotérico e ocultista esteve presente nos primórdios da Instituição Maçónica actual e que a evolução do ritual e do simbolismo, ocorrida ao longo do séc. XVII e início do séc. XVIII, foi a maneira encontrada para manter vivo e compreensível todo este acervo de conhecimentos, cujo objectivo maior é o aperfeiçoamento moral e espiritual do ser humano.

António Rocha Fadista – M∴ M∴

Bibliografia

Freemasonry – Bernard Jones
The Compagnognage and the Craft – C. N. Batham
Historiae Patriae Monumenta – Edita Langobardorum
Medieval Masters and their Secrets – W. W. Conery-Crump
Speculative Masonry – Harry Carr
The Transition from Operative to Speculative Enlightenment – F. A. Yates
The pre-eminence of the Great Architect in Freemasonry – R. H. S. Rottenburg

Fontehttps://www.freemason.pt/