A Desiderata: Reflexões sobre o poema

 

Analisando os ensinamentos da maçonaria, é possível identificar certo comportamento, atitude ou filosofia como tipicamente maçônicos, e identificar pessoas, filosofias e instituições, no presente e no passado, que manifestaram ou manifestam essa característica, mesmo sem possuir qualquer vínculo formal com a maçonaria como instituição. O texto “Desiderata” é um destes. O poema teria sido encontrado na igreja de St. Paul’s Church, Baltimore, em  1692” 

 

É bastante proveitoso fazer-se um exercício de reflexão em torno dos temas desenvolvidos nesse famoso e profundo texto. O poema reúne uma série de proposições sobre vários aspectos da vida, que traduzem a filosofia maçônica, de maneira clara e exata. 

 

Seu primeiro enunciado aconselha:

Segue tranquilamente entre a inquietude e a pressa,

lembrando que há paz no silêncio.”

 

A paz tem sido o anseio dos povos. Curtíssimos são os períodos da história, durante os quais, não se tem notícia de conflitos armados. As guerras produzem eventos degradantes, criando situações onde emerge o lado negativo e selvagem dos indivíduos, promovendo atrocidades inconcebíveis nos tempos de paz.  Gerações de jovens perdem suas vidas nos conflitos e, incalculáveis são as perdas materiais e culturais. Contudo, mesmo durante esses períodos tenebrosos e caóticos, surgem relâmpagos de luz, como atos de solidariedade, compaixão e humanidade. Também, paradoxalmente, nos tempos de conflito, a ciência, premida pela necessidade, evolui com maior presteza, ocorrendo descobertas que produzem seus frutos, quando por fim chega a paz. Porém, não é esse o sentido da paz referida no texto citado. Ali, comenta-se a paz interior, resultante do equacionamento adequado da interface entre realidade interior, subjetiva, e o mundo exterior, objetivo.

 

Numa sociedade como esta, no mundo ocidental, onde se tornou comum o stress, gerado pela  atividade frenética, adquire importância vital o saber parar, refletir, relaxar, observar atentamente os acontecimentos e a auto observação. A tendência comum é deixar-se levar de roldão pela sequência ininterrupta dos acontecimentos, quando se têm impressão de que, a ação do momento toma o lugar do ser, o que produz alienação gradativa do senso de identidade. Refletindo sobre a aparente permanência desse estado de agitação, um poeta, desesperançado, ponderou:  

“Onde jaz a palavra paz ?

“Ó paz, onde estás?

“Aqui jaz ...

“Aqui jaz...”

 

O texto da Desiderata sugere a possibilidade do encontro da paz em vida, aprendendo-se a cultivar o sossego, a ouvir o silêncio. No fluxo cotidiano da existência, o indivíduo encontra-se, quase sempre, imerso em um ininterrupto monólogo interior, com a mente alternando-se entre ocorrências passadas e expectativas futuras; a tal ponto, envolto na carga de emoções por elas liberadas que, mal se dá conta do momento presente. Passa-se por um amigo sem o reconhecer; volta-se para verificar se a porta tinha sido realmente fechada, numa demonstração de que, na maior parte do tempo, experimenta-se dicotomia entre corpo e mente, sendo-se, raramente, conscientes do aqui e agora. Quando se consegue tomar consciência plena do presente, por pouco tempo que seja, sem análise ou comparação, simplesmente fruindo o ato de perceber, o real ganha nova expressão, as menores coisas enchem-se de significados, produzindo satisfação e harmonia fecundas. 

  

Porém, faz-se necessário examinar, brevemente, o outro lado da moeda: existe progresso sem tensão? Sem desafios a serem vencidos? As situações-problema fazem, por vezes, emergir recursos que não se tinha conhecimento e, a criatividade é acionada pela necessidade. Por vezes, a estabilidade pode gerar marasmo, acomodação, apatia, estagnação, o que leva a conclusão que, mesmo nessa área, o equilíbrio é desejável e produtivo. E segue o texto em estudo:

 

“Tanto quanto possível, e sem humilhar-te, vive em harmonia com todos os que te cercam”

 

O autor desse texto entende que, a harmonia não deve ser buscada a qualquer preço, à custa da individualidade, do amor-próprio. Só pode ser verdadeiramente bom a quem também for forte, pois bondade com tibieza acaba sendo manipulada, servindo a propósitos diferentes daqueles pretendidos. Bondade, integridade e correção não devem, jamais, ser associadas ou confundidas com fraqueza. Um bom exemplo dessa ideia, ainda que distante da cultura brasileira, e de caráter mitológico, é o cavaleiro da Távola Redonda Sir Galahad, exemplo de bondade, pureza e integridade, mas, paralelamente, era guerreiro audaz, invencível nas batalhas. A bondade na força é conceito que se ajusta, perfeitamente, com a ideia maçônica da necessária harmonia entre Sabedoria, Força e Beleza, como sustentáculos ideais do templo humano. Subjacente ao pensamento comentado está, também, a disposição de não cultivar sentimentos e atitudes de inimizade contra outrem. Entretanto, não se pode evitar que alguém se posicione como nosso inimigo.

 

Fala a tua verdade, mansa e claramente, mas ouve também a dos outros, mesmo dos insensatos pois eles também têm a sua história.”

 

Os filósofos têm se dedicado, em diferentes épocas, ao estudo dos conceitos de verdade, detalhando e aprofundando concepções. O homem comum entende, como verdade, a correspondência exata do que se diz, do que se pensa conhecer, àquilo que realmente é. A possibilidade dessa correspondência, todavia, supõe compreensão correta, assimilação perfeita do real, mas essa assimilação depende do acervo particular de conceitos e experiências prévias de cada indivíduo. A crônica policial registra relatos diferentes, às vezes opostos, prestados por testemunhas oculares de acidentes. Esses relatos divergem muitas vezes, não apenas em detalhes acessórios, mas, também, sobre as causas e descrição dos eventos, mesmo quando as testemunhas não têm qualquer relacionamento prévio com as partes envolvidas na questão. Constata-se assim, que, diferentes indivíduos podem discordar a respeito do conteúdo de verdade manifesto em narrativas, ideias ou proposições, mesmo que, imbuídos de sinceridade. São os elementos componentes da história pessoal do ser, de sua formação intelectual, moral, emocional, que determinarão sua tendência a assimilar, mais prontamente, certas interpretações e aspectos de fatos, em detrimento de outros. Partindo dessa compreensão, entende-se a necessidade de expressar pontos de vista de modo mais claro e objetivo possíveis, assim como, de se cultivar a disposição de ouvir com atenção, inclusive, versões divergentes da nossa.

 

Evita as pessoas agressivas e transtornadas, elas afligem o nosso espírito.”

 

Se alguém, ao sair de casa pela manhã, encontrar dez pessoas conhecidas, das quais, nove lhe fazem elogios e uma faz uma crítica, qual dos comentários ouvidos terá a tendência de voltar continuamente à memória? A resposta para essa questão, na maioria dos casos, será: a crítica continuará, por longo tempo, sendo rememorada. Por razões que não são completamente conhecidas, é uma característica humana a tendência de aceitar, com mais facilidade, sugestões negativas, talvez, por insegurança, medo do futuro ou desconhecimento das reais capacidades individuais, ou ainda, falta de habilidade para administrar conflitos e confrontos. Por isso, as pessoas agressivas e transtornadas afligem o espírito. Existem pessoas que aparentam estar permanentemente descontentes; interpretam os eventos, geralmente, de modo negativo; um copo com água pela metade estará, para elas, sempre meio vazio; outras descreveriam o copo como “meio cheio”. Sempre prontas a disparar críticas ácidas e destrutivas, essas pessoas contaminam o ambiente à sua volta, envolvendo, com sua negatividade, aqueles que as cercam, sendo opacas, as sugestões e pensamentos positivos, que consideram “fora da realidade”. Entendem que “encarar a realidade”, “ver o mundo como ele é”, consiste em ressaltar os aspectos negativos e as misérias humanas, sem perceber que estes representam um lado da realidade e que os aspectos positivos, mesmo se, em menor quantidade, traduzem, também, um conteúdo idêntico de realidade.  

 

 

 “Se tu te comparares com os outros, te tornarás presunçoso e magoado, pois haverá sempre alguém superior e inferior a ti.”

 

Como já foi comentado anteriormente, cada indivíduo reflete a trajetória de sua história pessoal. Cada ser é oriundo de meio familiar, cultural e religioso diferente; encontra, em seu percurso, circunstâncias e oportunidades diversas, tem cargas genéticas particulares, que o levam a ser aquilo que hoje é.

 

Na verdade, o ser humano constitui um paradoxo. Cada um é, em si mesmo, um imenso universo. O mundo interior particular com suas memórias, sonhos, emoções, ideias, desejos e concepções torna os indivíduos únicos, sem par, em todo o cosmos. Entretanto, a fragilidade do ser é tal, que, vitimado por qualquer eventualidade, desaparece do mundo material, deixando apenas mínimas reverberações no pequeno círculo familiar e de amigos, que logo se esvaem. No contexto geral, é como se nunca tivesse existido. Humanos são um misto de fragilidade e grandeza que, até hoje, não foi adequadamente compreendido. A valorização das características individuais não implica, em nenhum momento, em acomodação, a manutenção de um estado imutável. O ensino ministrado no texto da Desiderata é a inutilidade da comparação entre seres sempre diversos, que nada diz da real evolução do indivíduo. A única comparação, capaz de produzir informações pertinentes, é aquela que julga o estado presente do ser, considerando sua própria condição anterior, avaliando, assim, se existe estagnação, evolução ou regressão. Essa ideia também transparece numa parábola, registrada em Mateus (Mateus, 25: 14-30). 

 

Diz a parábola que, um homem rico, dono de muitas propriedades, saiu em viagem, deixando, com seus servos, diferentes valores em dinheiro (“talentos”, a moeda da época), para que administrassem como lhes parecesse melhor. No seu retorno, chamou os servos para prestação de contas, dando igual recompensa a cada um que fez render o valor recebido. O único repreendido, sendo expulso da propriedade, foi aquele que, temeroso, enterrou o dinheiro, devolvendo-o como o recebeu. E a lição permanece: cada um deve render na proporção dos dons que recebeu, sendo a medida de seu valor, não o montante total produzido, mas o que foi capaz de gerar, partindo do que recebeu. E segue o texto:

 

“Vive intensamente o que já te foi possível realizar, da mesma forma que os teus planos. Mantém-te interessado no teu trabalho, ainda que humilde, ele é o que de real existe ao longo de todo o tempo.”

 

A história registrou o pensamento de filósofos e teólogos ,expressando menosprezo pela vida e prazeres materiais, valorizando, apenas, a transcendência. Aqui, porém, ressalta-se a alegria de viver, de interagir com o universo com consciência plena, assimilando, do melhor modo possível, com plenitude, os frutos da existência. Encontra–se, também na Bíblia, ecos do mesmo pensamento, no livro de Eclesiastes (Eclesiastes, 9: 7-9) atribuído a Salomão:

“Vai, come teu pão com alegria, e bebe contente teu vinho, porque desde há muito tempo Deus aprecia as tuas obras. Em todo tempo sejam brancas as tuas vestes, e não falte perfume em tua cabeça. Desfruta a vida com a mulher que amas, todos os dias que dure tua vida fugaz, que ele te concedeu debaixo do sol, os anos todos de tua vida efêmera; pois essa é a tua porção na vida, e no trabalho com que te afadigas debaixo do sol.”  

    

O despertar para a realidade transcendente da existência, quando experimentado em profundidade, pode trazer consigo nova apreciação de valores, da vida, da interação humana em si, levando à adesão, à participação construtiva, não à evasão. O eremita que se isola numa caverna, para melhor buscar a Deus, é inútil, não prestando serviços a si mesmo nem aos outros. Khalil Gibran, em seu livro “O Profeta” (Gibran, 2001), esclarece, poeticamente, essa verdade:

E se quereis conhecer a Deus, não procureis transformar-vos em decifradores de enigmas. Olhai, antes, à vossa volta e encontrá-Lo-eis a brincar com vossos filhos. E erguei os olhos para o espaço e vê-Lo-eis caminhando nas nuvens, estendendo o braço no relâmpago e descendo na chuva. E O vereis sorrindo nas flores, e agitando as mãos nas árvores.”

 

A descoberta de valor transcendente traz nova luz, mesmo às pequenas coisas, às tarefas cotidianas, ao trabalho. Derivado de interpretação religiosa restrita, houve quem considerasse o trabalho como maldição de Deus, como castigo pela desobediência do paraíso. Se, porém, mesmo aqueles que entendem o texto bíblico, literalmente, lerem-no com atenção, encontrarão o autor de Gênesis dizendo (Gênesis 2: 15): 

O Senhor tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para  cultivar e guardar.”

 

O que mostra o trabalho associado à ideia do paraíso edênico. Considerando-se o trabalho profissional da perspectiva da evolução pessoal, nada é importante, e tudo é importante. Isto é, qualquer profissão, qualquer trabalho oferece idênticas oportunidades de evolução, se for desenvolvido com ânimo correto: não é o trabalho, em si, que importa, mas, a atitude com que ele é executado. Então, tudo se torna importante, e as mínimas coisas enchem-se de significados. Conta-se que, certo filósofo aproximou-se de um canteiro de obras onde operários (maçons operativos) atarefados preparavam as pedras para a edificação. Perguntou a um deles; 

O que você está fazendo?

E ouviu a resposta em tom aborrecido:

   Estou talhando pedras, não está vendo?

Foi-se o filósofo, e encontrou outro operário, no mesmo ofício, e repetiu a pergunta. Desta vez, teve como resposta:

   Estou ganhando meu pão.

Foi, ainda, a um terceiro e perguntou:

   O que você está fazendo?

E ouviu, então, como resposta :

       Estou construindo uma catedral.

Ora, todos os três estavam talhando pedras e, com esse trabalho, ganhavam seu sustento, mas, somente o terceiro sentia-se integrado a um projeto maior, participante de algo que ultrapassava sua necessidade pessoal imediata, vendo um pouco mais longe. Para este, o trabalho realizado, por certo, parecia menos penoso do que para o primeiro, pois seu objetivo colocava-o além do esforço e do suor.

Mas, continua, a Desiderata, seus ensinamentos:

 

                “Sê cauteloso nos negócios, porque o mundo está cheio de astúcias, mas não caias na descrença – a virtude existirá sempre! Muita gente luta por altos ideais e em toda a parte, a vida está cheia de heroísmo.”

 

Em Mateus (Mateus, 10: 16), há a orientação:  

“...sede prudente como as serpentes e sem malícia como as pombas.”

Essa orientação alinha-se com o conselho da Desiderata.

Todos se devem manter firmes, com mentes claras, lúcidas, intenções puras, agindo com correção e integridade, mas, ao mesmo tempo, alertas, perspicazes, atentos às ações dos outros que não atuam segundo os mesmos princípios. Conscientes de que o mal existe, deve–se desenvolver salvaguardas e estratégias necessárias para enfrentá-lo.

 

Também, alerta-se, aqui, para que esse cuidado não se torne paranoia. Cultivando a observação temerosa dos aspectos negativos da vida, tender-se-á à depressão e ao desespero. É preciso admitir a existência do mal, reconhecer suas articulações, mas, observar, também, a ação do bem. Em toda a parte, apesar do destaque que ganham as ações negativas, existe virtude em ação. Quando ocorrem calamidades, é bem verdade que, alguns aproveitam a oportunidade para saques e furtos, mas, grande é o número de voluntários que se apresentam para contribuir, arriscando, às vezes, suas vidas. Grande, também, é a quantidade de doações, mesmo daqueles que pouco possuem, em benefício de flagelados, acometidos por infortúnios, ainda que, alguns encarregados da distribuição dos donativos desviem parte, do montante arrecadado, para seu uso particular. 

 

Muito da ideia que se faz do mundo é devido à mídia. Boas notícias não vendem jornais, e existe competição acirrada pela atenção do público. Certa ocasião, na Coréia do Sul, cerca de um milhão de pessoas de diferentes religiões reuniram-se, em praça pública, num movimento ordeiro pela paz. Os poucos jornais que comentaram a notícia o fizeram em um canto de página interior. Na mesma semana, alguns estudantes em protesto no campus universitário, no mesmo país, fizeram atos de vandalismo que foram notícias de primeira página nos principais jornais do mundo, além de noticiados pela televisão. Encontra-se, sempre, as ações paralelas do bem e do mal, cabendo, a cada um, conscientemente, tomar partido.

 

“Sê tu mesmo, e, principalmente, não simules afeição, nem sejas descrente do amor, porque mesmo diante de tanta aridez e desencanto, ele é tão perene quanto a relva.”

 

Encontra-se, agora, um chamado à autenticidade quanto à expressão de sentimentos. Em certas ocasiões, têm-se observado agressividade e descortesia, sendo justificadas pela máscara da autenticidade: “Eu sou assim mesmo, sincero”. Ora, cortesia e civilidade devem sempre ser cultivadas. Não expressar desagrado por questão de cortesia, é diferente da aprovação bajuladora, da simulação de sentimentos que não existem, na maior parte das vezes, movidos por escusos interesses pessoais. Exalta-se o cultivo dos sentimentos espontâneos e o valor das emoções.

 

Também, a figura da relva, crescendo em toda parte, descreve essa característica inexplicável do amor apesar das contrariedades, dos desenganos, das negações de sua eficácia, continuamente, observa-se atitudes, das mais inesperadas, motivadas por esse intenso sentimento, cujo poder supera largamente os comandos  da razão.  Paulo diz ser o amor o Dom supremo (I Corintos, 13: 2,3):

“...Ainda que eu tivesse tal fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse amor eu nada seria. Ainda que eu distribuísse meus bens aos famintos, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse amor, nada disso me adiantaria.”

 

A experiência humana comum, entretanto, não costuma alcançar esse nível elevado de desprendimento, de negação de si mesmo, de transcendência experimentada apenas pelos luminares das civilizações. O amor humano manifesta as características do ser: incompleto, falho, incoerente e, muitas vezes, inconsistente, ainda que, em certos momentos, inexplicavelmente, supere todas essas limitações e inspire atitudes de proporções heroicas. 

 

“Aceita com carinho o conselho dos mais velhos, mas sê compreensivo para com os impulsos inovadores da juventude.”

 

Mais uma vez, se faz presente o Janus romano, deus de duas faces, uma jovem e outra idosa, olhando para direções opostas. Numa época em que se pratica o culto ao jovem, ao novo, esse pensamento traz o equilíbrio necessário. Não se pode ignorar o valor da experiência passada, pois, cada um constrói sobre fundamentos colocados por outros, ninguém parte do zero absoluto. Daí,a importância do conselho dos mais velhos, mais experientes, cuja história de vida lhes permite visão mais ampla e abalizada. O livro dos Provérbios, do Antigo Testamento, chama de sábio, não aquele que tudo conhece, que não precisa mais aprender (pois este não existe), mas, sim, aquele que ouve conselhos e os segue (Provérbios, 12: 15).

 

A maçonaria é uma instituição calcada nos valores da tradição, concedendo especial atenção aos costumes, expressões e lendas dos antigos construtores de catedrais, que vieram compor seus rituais modernos, procurando, delas, extrair ensinamentos úteis para os dias atuais. Também, em civilizações e escolas de pensamento do passado, foi buscar imagens e símbolos, pelos quais, pudesse ilustrar sua visão de mundo, reconhecendo, assim, o imenso valor do acervo cultural, produzido pelos ancestrais.  Isaac Newton, expoente do pensamento científico do século XVII, cuja data de nascimento (1642) chegou a ser considerada, por alguns, como o referencial ideal, para o calendário de uma nova era, ao ser louvado por seu pensamento ter alcançado alturas antes inatingidas, disse: 

“Se alcancei tais alturas, é porque estava apoiado em ombros de gigantes”, em reconhecimento do trabalho de seus antecessores. Porém, não se pode, tampouco, ignorar a necessidade de evolução. Tudo no universo é dinâmico, e a mudança é a lei natural, sendo as formas cristalizadas e inoperantes, substituídas por outras novas mais adaptadas. Reflete-se, aqui, a outra face do Janus, o jovem, encarando destemidamente o futuro, pronto a aceitar novos desafios, confiante no porvir. Como em todos os outros aspectos, também, aqui, é necessário especial critério. Nem sempre, mudar é evoluir, e o novo não é intrinsecamente melhor, sendo essencial o desenvolvimento da capacidade de julgar. Torna-se vital o cultivo da disposição de reavaliar posições à medida que novos dados forem surgindo. Não se trata de incentivar a “metamorfose ambulante”, da canção de Raul Seixas1, mas, sim, de evitar a cristalização em moldes rígidos, incapazes de assumirem novas posições necessárias; de nunca rejeitar o novo, simplesmente, pelo comodismo, pelo amor aos antigos hábitos que clamam por mudança.  

 

“Alimenta as forças do espírito, que te protegerão do

infortúnio inesperado, mas não te desesperes com perigos imaginários. Muitos temores nascem do cansaço, e da solidão, por isso, e a despeito de uma disciplina rigorosa, sê gentil contigo mesmo”.

 

A psicologia atual tem reconhecido a necessidade do relacionamento do ser humano com o aspecto transcendente, numinoso, divino, da existência. Ainda que tardiamente, admite-se, agora, não ser esta necessidade característica, apenas, de mentes incultas, primitivas, mas, sim, parte integrante da herança humana,  aspecto essencial a ser desenvolvido para que o ente humano possa crescer de modo equilibrado. Quando esse impulso é ignorado, geram-se conflitos desarticuladores, manifestando-se nas várias facetas componentes da personalidade. O salmista usa imagens poéticas, mas, não menos intensas, para se referir a esta realidade:

“Como suspira a corsa pelas correntes de águas, assim

Minha alma suspira por ti, ó Deus!  Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo.” (Salmo 42: 1-2).  A imagem do animal sedento, levado pelas poderosas forças instintivas, a procurar a satisfação de sua necessidade, é bastante forte nessa comparação.

 

Não sendo religião, a maçonaria, todavia, reconhece o

valor da busca de relacionamento pessoal com uma divindade, da necessidade fundamental do ser de encontrar expressão, conforto e objetivo em descrições da realidade que contemplem visão de mundo, mais abrangente do que aquilo que se pode experimentar, através dos cinco sentidos. Fiel aos seus princípios, contudo, ela não faz opção, não se alinha a qualquer das descrições existentes, deixando, a seus membros, a decisão particular, pessoal, quanto à linha de pensamento, forma de culto, religião ou seita que mais esteja de acordo com a concepção de cada um. 

 

O texto do poema, porém, alerta para que essa busca não

assuma características de compulsão doentia, de fanatismo, gerando fantasmas que atormentaram gerações inteiras e, até hoje, têm produzido desajustes, conflitos, até mesmo mortes. O autor do livro de Eclesiastes (atribuído a Salomão) já ensinava:

“Não sejas demasiadamente justo, do contrário

destruirias a ti mesmo” (Eclesiastes, 7: 16). Refletindo em suas palavras, o perigo do rigor excessivo e, a necessidade do difícil equilíbrio entre a autodisciplina consciente, coerente, e o adequado amor próprio, o sentido de autovalor, auto respeito, aceitação, “ser gentil consigo mesmo”.

 

 “Tu és filho do universo, assim como as estrelas e árvores, tu mereces estar aqui, e mesmo que tu não possas compreender, a terra e o universo vão cumprindo seu destino.”

 

A poética frase: “Nós somos feitos do pó de estrelas” traduz uma ideia científica os elementos que compõem nosso corpo foram formados no núcleo de estrelas que, na sequência de suas existências, explodem, espalhando esses elementos pelo universo, os quais, com o passar das eras, são aglutinados em planetas, até que venham a compor organismos vivos. Existe, assim, identidade na origem material que se compartilha com toda a criação: árvores, rochas e animais. Nossa civilização tecnológica pode levar a ignorar esse fato básico o homem é produto do meio natural, não resultado de tecnologia; o ser humano é irmão das estrelas e das árvores, e o lugar natural do ser humano é aqui, neste mundo. Aqueles que já tiveram, em algum momento, um vislumbre que seja da possibilidade de diferentes níveis de consciência, encontram, também, outra identidade mais profunda:  experimentam especial sentido de harmonia interna e externa, um conhecimento/certeza, não verbalizado de uma mesma essência, permeando o cosmos, confirmando que “assim como é em cima, é embaixo, e assim como é fora é dentro”, numa unidade que transcende o aspecto material, pois, como dizia o apóstolo Paulo, referindo-se à onipresença de Deus:

Nele vivemos e existimos” (Atos dos Apóstolos,  17: 28).

 

Segundo Einstein, o fato mais admirável, com relação ao universo, é a existência de leis físicas, isto é, o universo é inteligentemente ordenado:  a natureza, em si, é submissa a normas e leis, ainda que essa ordem possa, por vezes, ser “não linear” e, algumas das leis, desconhecidas. Mesmo o caos apresenta padrões especiais de ordem, apesar de diverso da lógica comum. Existe propósito, intenção, mesmo que, seu desenrolar esteja além do alcance de limitada compreensão humana.

 

“Por isso, estejas em paz com Deus, como quer que tu o concebas, e, quaisquer que sejam teus trabalhos e aspirações na fatigante jornada pela vida, mantém-te em paz com tua própria alma, pois acima das falsidades, dos desenganos, das agruras, o mundo ainda é bonito!”

 

A expressiva maioria das pessoas teve, desde a infância, contato com a ideia da existência de um Criador, ou de Deus. Muitas vezes, o conceito apresentado refletia proteção, outras, punição, castigo. Na concepção infantil, o bom velhinho de barbas brancas alternava sua posição com o juiz severo. As ocasionais contradições existentes nas religiões acabam por afastar aqueles que, em seu processo evolutivo pessoal, não tiveram experiência da realidade transcendente, além do conceito primário que lhes tenha sido apresentado na infância, e que, na vida adulta, não é mais satisfatório. Contudo, mesmo os conceitos rejeitados, ideias errôneas assimiladas, com sua carga de emoção característica da infância e adolescência, podem deixar marcas profundas e ressentimentos difusos contra a vida, circunstâncias, em último análise, contra o Criador, dentro dos conceitos absorvidos, ainda que negados e não conscientemente admitido. 

 

Agostinho dizia ter, a alma, desassossego existencial que só poderia ser satisfeito pelo contato com Deus. A falta da paz interior, do contato do Ser com o transcendente, é fonte de inúmeros males psíquicos que acabam por atingir também o corpo. 

 

Muitos conservam, de Deus, a imagem descrita em alguns trechos do Antigo Testamento, colérico e punitivo, “visitando a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira geração” (Êxodo, 34: 7),  não chegando a conhecer o Deus/amor, Deus/pai dos evangelhos que, mesmo no Antigo Testamento, diz também: “...faço benevolência até mil gerações daqueles que me amam” (Êxodo, 20: 6), numa alegoria, em que a duração da Ira é insignificante, quando comparada com a permanência da bondade (os números três e mil são apenas simbólicos, não significativos). Um dos nomes que os hindus têm para Deus é Bhagavan, o opulento, doador. No evangelho de Mateus, Jesus diz (Mateus, 5: 45):

 “Deus faz nascer seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”. 

 

Observa-se, nesse texto, a ênfase no caráter doador, não discriminativo da divindade. Contudo, a incompreensão quanto à coexistência da onipotência de Deus, com a precariedade da condição humana, com a miséria e sofrimento tão abundantes, pode desencadear sentimento de desencanto, revolta, que toldam a percepção, impedindo abertura e sintonia com os aspectos positivos, vivificantes, regeneradores da existência. Também, o desenrolar da vida pessoal pode, por vezes, acumular amargor. Quando se é jovem, tudo na vida é futuro: vida profissional, casamento, conquistas e aquisições pessoais, tudo está colocado naquela dimensão do desejo, dos planos, onde tudo é possível, e não existem limites. Com o passar dos anos, entretanto, verifica-se que, nem todos os projetos foram realizados como planejado e, outros, tomaram direções inesperadas, o que pode gerar sentimento de frustração, pois, não existe alguém, em todo o mundo, em qualquer tempo, que tenha realizado todos os seus sonhos, sem uma alteração sequer. Por isso, é necessário confrontar-se sentimentos e emoções reais com relação à divindade, como quer que se conceba, ter uma “conversa franca, de homem, da criatura, para o Criador”, estabelecer com clareza a posição, em suma, estabelecer a paz. 

 

O ensinamento bíblico diz que a proximidade com Deus é adquirida pelos buscadores sinceros e persistentes, esclarecendo, contudo, que essa presença exige senso mais apurado de responsabilidade pessoal e, também, social: ( Isaías, 59: 2):

Lavai-vos e purificai-vos! Tirai da minha vista vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem!, Buscai o direito, corrigi o opressor, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então sim, poderemos discutir, diz O Senhor.”

 

Essa relação direta da religião com a ação, do reflexo do crescimento vertical (o prumo), do conhecimento de Deus no relacionamento horizontal, com o próximo (o nível), foi, poeticamente, descrito por Gibran Khalil Gibran, em “O Profeta” (Gibran, 2001), onde seu personagem, após discorrer sobre temas como o amor, o matrimônio, o trabalho, as habitações, a liberdade, o crime e o castigo, as compras e vendas, etc., abordando as diversas facetas que constituem o viver humano, responde uma questão sobre religião:

E um velho sacerdote disse: “Fala-nos da religião”. E ele

disse: “Tenho eu falado de outra coisa hoje? Não é religião todas as nossas ações e reflexões? E tudo o que não é ação ou reflexão, mas aquele espanto e aquela surpresa sempre brotando na alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou manejam o tear? Quem pode separar sua fé de suas ações ou sua crença de seus afazeres? Quem pode espalhar suas horas diante de si, dizendo: “Esta é para meu Deus, e essa é para mim; esta é para minha alma, e essa é para meu corpo?” (...) Vossa vida cotidiana é vosso templo e vossa religião. Todas as vezes que penetrardes nela, levai  convosco todo o vosso ser. Levai o arado, a forja, o macete e a lira, Todas as coisas que modelastes por necessidade ou por prazer.”

 

As diversas religiões têm suas explicações para as desigualdades e agruras da vida, e podem satisfazer a muitos que delas se aproximam. Contudo, sempre será possível questionar; nunca ter-se-á resposta final para todas as dúvidas, nem atar-se-ão todas as pontas de todos os fios, pois, a capacidade de compreensão humana, como já foi comentado, é limitada pelo acervo de conceitos assimilado e, a realidade última do cosmos, certamente, transcende tudo o que qualquer indivíduo já experimentou ou concebeu em sua consciência perceptiva. A verdade, em cada formulação religiosa, foi revelada, isto é, envolta nos véus de palavras, conceitos e alegorias necessárias para a comunicação na linguagem humana, diferentes para diversos povos e épocas. Nenhum indivíduo é capaz de ultrapassar, por completo, as estruturas conceituais de pensamento de sua época, com as quais foi criado  e, dentre as quais, evoluiu e ver o novo absoluto como ele é. Assim, é verdadeira, a ideia que diz: Cada um que ora, ora ao Deus de seu coração, isto é, até aqueles que pertencem a uma mesma denominação religiosa, aceitando definições e conceitos teológicos comuns, têm, ainda que, não o percebam, compreensão particular e pessoal de seu Deus, pois, aqueles conceitos e definições estão associados a imagens e emoções, derivadas de vivência particular, intransferível. Toda experiência vivida é arquivada dentro do contexto emocional, intelectual e espiritual do experimentador, envoltos nas pequenas minúcias que caracterizam cada individualidade, que a tornam única, diante de si mesma e de Deus, ou do Criador. E conclui o poema Desiderata

 

“Portanto, sê prudente e faz tudo para ser feliz!” 

 

Os filósofos gregos epicuristas entendiam como objetivo da vida o usufruto dos prazeres. Antes deles, Aristóteles concebia, como objetivo supremo do homem, a aquisição de felicidade. Ao contrário do prazer, que uma vez satisfeito se esvai, o conceito aristotélico invoca algo perene, moderado, pois, o excesso gera o oposto do intencionado.

 

O objetivo proposto pelo poema Desiderata, não pode ser qualificado como egocêntrico, egoísta, visto que, ninguém poderia ser verdadeiramente feliz se, em sua busca, produzisse, à sua volta, infelicidade. O que se tem é uma chamada a um viver consciente, sintonizado com os aspectos positivos, criativos, geradores de energia da existência. A alegria de viver pode ser encontrada em diferentes momentos e atividades, e tem sua origem, em especial, disposição interior, não exatamente em fatos ou circunstâncias, se bem que, estes tenham peso significativo.

 

Obviamente, não existe alguém, que, no transcurso de sua vida, tenha experimentado, unicamente, momentos felizes. É parte da existência humana, a alternância e, dessa vivência diferenciada, adquire-se maturidade e crescimento. Contudo, tem-se, como alvo, a plenitude; alcançar o máximo desenvolvimento das potencialidades, em todas as áreas de expressão do ser, usufruindo da existência de maneira mais completa e satisfatória possível, o que, em última instância, é felicidade.

 

   Raul Santos Seixas, cantor e compositor brasileiro, nasceu em Salvador, Bahia, em 1945 e faleceu em São Paulo, em 1989.

 

 

Eleutério Nicolau da Conceição

Mestre Maçom Instalado da ARLS “Alferes Tiradentes” nº 20, autor de vários livros, membro da Academia Catarinense Maçônica de Letras, palestrante e pesquisador maçônico.