O tempo e seu ofício divino

Quando desejamos algo além de nossa própria compreensão, nos afastamos do que chamamos de discernimento. Buscamos, insistimos e, muitas vezes, passamos do ponto. O ponto do bom senso, a linha tênue que separa o amor próprio do amor que dedicamos ao objeto de desejo. Esse momento pode estar além de nossa consciência, o que pode fazer com que deixemos de nos reconhecer em determinadas situações, um estágio que exige trégua.

Nem sempre há como prever nossa reação frente às adversidades, por isso é fundamental que busquemos equilíbrio parando para respirar e olhar para si, procurando o que caminha contra a nossa essência e tanto nos prejudica. Há de se saber a hora de parar. De deixar morrer. Deixar partir. É preciso se permitir passar por uma espécie de luto. Um período importante no qual presenteamos a nós mesmos com um bem preciosíssimo: o tempo.

Inventivo e de aparência contínua, como eternizou Caetano em sua música “Oração ao tempo”, chamando-o de deus devido à influência que exerce sobre nossas vidas, o tempo possui artimanhas que merecem nossa atenção. É dele o grande e irremediável poder com o qual devemos aprender a lidar e, sobretudo, respeitar. Sua passagem apaga e constrói vidas e somente deixando que ele cumpra o seu papel é que nossa história poderá seguir por rumos desejados ou novos e surpreendentes

Invocando e respeitando seu poder, podemos analisar as nossas ações e as ações dos outros para conosco sem julgamentos. É primordial que isso seja realizado sem que nos façamos de vítima, deixando assim de colocar o outro no papel de opressor. Não existe vilão nem mocinho, a realidade bem vivida é bem mais interessante que qualquer folhetim. O ato de parar e ter um encontro conosco e o som do nosso coração é um ato de amor e só traz benefícios.

Trata-se de olhar para dentro e perceber o que permitimos sair de nós, o que damos ao mundo e o que fazemos com o que ele nos dá. Enxergar-se como um sofredor das circunstâncias é um fardo triste demais de se carregar, além de não levar à lugar algum, alimenta sentimentos como a tristeza e a mágoa, abrindo espaço para as chamadas “doenças da alma”. A tristeza sempre aparecerá e bem lá no fundo, sabemos o que devemos fazer: Encarar o sofrimento, buscando usar mais do olhar, ter em mente que não há apenas um lado a ser considerado, ou somente uma história a ser contada. Prestar atenção a detalhes que, muitas vezes, deixamos passar, mudando assim a forma como enxergamos e encaramos o que nos deixa triste.

É como um luto - o luto pelas coisas que queremos demais, uma pausa em que abrimos as mãos e deixamos deslizar pelos dedos a areia de nossos apegos. Deixar escorrer aquilo que queríamos demais que acontecesse, aquela pessoa que queríamos para sempre ao nosso lado ou o objeto de consumo que tanto desejamos.É preciso libertar para ser livre.

A pausa é necessária, e é por meio dela, que temos a possibilidade de nascer de novo e não é possível renascer sem deixar que algo morra, que algo se vá.O renascimento traz todas as lições aprendidas no passado que serão necessárias para o recomeço. A lagarta sairá do casulo e contemplará o mundo refletido pelo seu novo olhar, um novo modo de enxergar a vida e os nãos que ela tem a dar. Perceber que haverão infinitos recomeços e encerramentos é tomar uma postura sábia.

Não há como impedir que algo ou alguém vá embora ou que tudo aconteça somente por nossa vontade, algumas coisas simplesmente não nos pertencem e é bom que seja assim. Mais a frente, teremos a certeza de que deixamos acontecer o que era necessário, lutamos de uma forma diferente, não forçamos nada. Isso, mais cedo ou mais tarde, será reconfortante se tivermos calma. Aparentemente, esse é um olhar conformista em demasia, mas se nos permitirmos refletir profundamente sobre o assunto, percebemos que, na verdade, essa é uma postura harmoniosa com a nossa própria natureza.

Um ciclo deve acabar para outro ter início.Para isso, é vital aprender a lidar consigo mesmo e com as perdas, mesmo as pequenas. Desse modo, o luto se faz tão necessário porque ele traz, também, o silêncio. Essa dádiva que somada ao tempo revigora as forças e permite que encontremos a tão sutil e libertadora serenidade. É preciso paciência, dádiva associada à calma e à paz, atributo daquele que tem uma boa relação com o tempo. Paciente é qualquer pessoa que saiba esperar e que seja capaz de encarar a vida de forma serena, aquele que tem um acordo com esse senhor tão bonito que nos acompanha desde o nascimento. Que deixa que ele passe sem tentar impedi-lo, pois sabe que não tem esse poder. Aquele que observa e se prepara para agir no momento oportuno e colher o que toda boa e velha divindade tem a ensinar.

Assim eternizou Lenine em sua canção: “O mundo vai girando cada vez mais veloz. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós um pouco mais de paciência”. Em um mundo em que tudo acontece numa velocidade absurda, em que tudo passa como uma locomotiva, dar espaço para o tempo e permitir o luto, por menor que seja, é saber dar valor ao que temos de mais precioso, a vida que caminha lado a lado com um dos deuses mais lindos.

Camila Bertelli

Respirando música, literatura e café, se arrisca a escrever para espantar o que há de ruim e eternizar o que ama. Tem os pés sempre prontos para a estrada e a cabeça quase sempre na lua.

publicado em recortes por Camila Bertelli

O tempo tem um grande e irremediável poder com o qual devemos aprender a lidar e, sobretudo, respeitar. Somente deixando que ele cumpra o seu papel é que nossa história poderá seguir por rumos desejados ou novos e surpreendentes caminhos.