Voltaire

Quando mandei a um amigo um pequeno ensaio sobre Voltaire, não imaginava que fosse despertar tanto interesse, a ponto de provocá-lo e levá-lo a uma apreciação tão minuciosa. Recebi, em troca, minúcias e detalhamentos tão profundos, que confesso não estar capacitado a responder-lhe na mesma moeda. Não tenho conhecimento
histórico, filosófico ou sociológico para acrescentar substância à tal discussão.

Mas tenho, por essa figura, verdadeiro fascínio. Considero Voltaire um divisor de águas do pós-renascimento e lhe admiro a coragem de antepor-se, de forma pública e destemida, aos detentores do poder político-religioso da época.

Descartes e Newton – pouco antes – não tiveram, sobretudo o primeiro, o mesmo desassombro e, embora igualmente inteligentes, deixaram implícitos em suas afirmações, por presumível medo, uma exagerada cautela e um indisfarçado enquadramento religioso em que, possivelmente, nem acreditavam.

Já Voltaire – talvez por ser mais finório, habilidoso e dono de extraordinário jogo de cintura – conseguiu ser mais legítimo, mais ousado. Escorado no prestígio adquirido junto a reis e rainhas, e também junto ao povo, foi audacioso ao ponto de combater o clero de forma ostensiva e quase heróica. Nunca conseguiram pôr-lhe as garras os papas e os cardeais, que, mesmo assim, ciosos dos perigosos efeitos de seus escritos sobre a cultura européia da época, procuraram, por todos os meios, deformar-lhe a imagem póstuma, inventando confissões de última hora e extremunções que, segundo relatos isentos de ânimo, nunca aconteceram.

Essa falsa versão, me ensinaram no colégio os padres jesuítas, sujando-lhe a memória com calúnias pronunciadas em tom axiomático, sobre um hipotético arrependimento de última hora, acrescidas de escatológicos relatos de morte por afogamento num urinol cheio de dejetos.

Esse esforço, atualmente em moda, de tentarem alguns místicos unificar a teoria quântica e a da relatividade tem dado margem a mais uma picaretagem. Há gente que chega ao desplante de enxergar nessa brecha teórica – por enquanto incompreendida – um meio de dar concretude à idéia estapafúrdia de estar ali, no sutil e desusado comportamento das partículas subatômicas, a prova da existência do espírito como entidade independente, por suposto situada naquele misterioso limbo entre o ser e o não ser, ou seja, inserido entre o que é matéria e o que é energia pura.

Mas todos esses oportunistas darão com os burros n'água, quando surgir alguém com a explicação definitiva de mais essa incógnita da ciência. E esse alguém, certamente, virá despejar outra pá-de-cal nas crendices místico-religiosas que teimam em sobreviver no mundo da verdade científica. Quem viver, verá.

A Natureza é sábia; algum dia – que não deve estar longe – aquilo que, à falta de melhor título, eu sempre chamei de consciência cósmica imanente fará nascer um misto de Einstein e Planck,encarregado de dar esse pulo-de-gato definitivo. Gostaria de estar vivo para testemunhar esse espetáculo que abalará até os alicerces dessa falaciosa cornucópia de presunção de certezas e infalibilidades, chamada Vaticano.

Talvez um novo Voltaire...

Mario Gentil Costa (Falecido em 2017)