A capacidade de mudar a própria realidade.

O sábio cronista Artur da Távola professoralmente já nos ensinava que a palavra decisão tem a ver com cisão (corte). Então, decidir é cortar algo que já não nos serve mais e, a partir disso, criar algo novo com o que sobrou.

Hieronymus Bosch, talentoso pintor holandês do século XVI, trouxe ao mundo uma brilhante tela na qual um homem dotado de astúcia e autocontrole hipnotiza um grupo de nove pessoas. Este homem, em completo poder de si, intriga pela capacidade de manusear objetos com total destreza. A pintura de Bosch, tão longínqua temporalmente de nós, expõe uma das facetas mais brilhantes do ser humano: a habilidade em transformar a realidade em mágica.

Na vida cotidiana, muitas vezes atropelada por acontecimentos incessantes, constitui uma tarefa cada vez mais difícil manter a própria realidade em perfeito equilíbrio. A estabilidade, como ponto de inflexão obrigatório na jornada em direção às nossas metas, configura-se como a grande esfinge dos dias atuais: adquirimo-la ou então seremos consumidos por pequenos problemas. O desafio está justamente na capacidade de conseguir equilibrar cada um dos objetos que nos circundam.

Mãe, pai, cônjuges, filhos, irmãos, chefe, problemas, preocupações, tédio, irritação, cansaço físico e mental.

As vezes pensamos que cada coisa deste mundo foi feita para nos tirar daquele tranquilo lugar existente em nosso interior onde encontramos alento e paz.

Não por nada muitas vezes soa magnífica a imagem do equilibrista, aquele sujeito que em meio ao fogo em movimento se mantém ereto e concentrado em um objetivo fixo. Talvez a grande imposição deste mundo seja exatamente o desenvolvimento desta capacidade em meio ao caos que pode vir a ser a realidade. Não que este exercício seja fácil, mas é preciso começar. Saber a hora de suspender tudo é uma das vias possíveis. Neste momento, é vital permitir-se estar só, desligar o telefone celular, trancar a porta e egoisticamente olhar para dentro, caminhando lentamente para a retomada do controle.

Retomar o centro é uma decisão séria. O sábio cronista Artur da Távola professoralmente já nos ensinava que a palavra decisão tem a ver com cisão (corte). Então, decidir é cortar algo que já não nos serve mais e, a partir disso, criar algo novo com o que sobrou. Nesse sentido, assumir a centralidade - em princípio - pode ser um ato doloroso, pois pressupõe a ação de preferir algumas coisas em preterimento de outras. Em outras palavras, atingir o estado prestidigitador, tal como o personagem do quadro de Bosch, pode ser uma via inicialmente dolorosa, porém necessária rumo à inspiração e a um estado de contemplação agraciado por todas as coisas belas que nos rodeiam.

Quando aceitamos o tempo como nosso aliado e não como nosso inimigo as coisas começam a fluir. Após, entendendo-nos como verdadeiros jardineiros no jardim de nossa própria vida, aprendemos a limpar o terreno, tirando as ervas daninhas, podando o que está desproporcional e adubando o que necessita ser cultivado. Tudo isso com o acréscimo da sabedoria da paciência, pois a essa altura já saberemos esperar o melhor período de plantio para depois, com sabedoria e cautela, regar o que necessita crescer.

 

Professor universitário e doutorando em História da Literatura. Adora uma boa conversa e reflexões pertinentes. A escrita é apenas (mais) uma forma de expandir a sagrada filosofia de buteco nossa de cada dia.