A espiritualidade do Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA)


 

As cerimônias maçônicas tradicionais são conduzidas de acordo com as práticas do Rito Escocês Antigo e Aceito, o REAA, o que significa que os maçons trabalham para a glória do Grande Arquiteto do Universo. A invocação do Grande Arquiteto do Universo é muito significativa. Coloca este episódio numa dimensão de espiritualidade. Liga este episódio à busca maçônica do imaterial, do transcendente.

Para aqueles que receiam perder-se na confusão dos gêneros: considerar o percurso maçônico em termos de despertar espiritual e de busca da transcendência não implica qualquer crença ou adesão religiosa particular. É evidente que isso também não a exclui.

A espiritualidade não é uma prerrogativa das religiões. O conceito de princípio criador do Grande Arquiteto do Universo, tal como definido pelo Convento de Lausanne em 1875, é o fundamento do nosso Rito.

Uma breve incisão permitir-nos-á evocar um pensador, Spinoza, que durante toda a sua vida se apresentou como um buscador; foi rejeitado pelas mentes estreitas da sua comunidade, presas à estrita observância da forma em vez de empenhadas em procurar a ideia por detrás dos símbolos e o significado mais profundo por detrás das palavras.

Não há dúvida, porém, de que Baruch Spinoza acreditava na existência do Princípio e tinha uma concepção muito mais ampla e absoluta daquilo que os homens, por meio de uma redução antropomórfica, deram a si mesmos como imagem de Deus.

Spinoza convida-nos a considerar Deus como o Todo-Um: Deus é o conjunto do universo manifesto e, portanto, o conjunto das regras que animam e dão coerência a esse universo, a unidade que essas regras lhe conferem para além da multiplicidade das suas formas.

Assim, Spinoza está longe de ser um ateu. Se o quisermos classificar do ponto de vista da crença e da fé, teríamos de o chamar panteísta, no sentido de conceber que Deus está em tudo, ou melhor, de certa forma, que Deus É tudo. A criação funde-se com o Criador. Spinoza resume-o explicitamente:

“tudo na natureza, considerado na sua essência e perfeição, envolve e exprime o conceito de Deus”.

Deste ponto de vista, defende uma espiritualidade na qual os maçons se podem reconhecer para além das suas próprias crenças espirituais ou religiosas. Há um outro aspecto do pensamento e da obra de Spinoza que deve interessar particularmente aos maçons: ele defende a liberdade de filosofar (no “Tratado Teológico-Político”). Esta defesa da liberdade culmina na “Ética”, onde mostra que a liberdade e o determinismo são conciliáveis.

De fato, as leis da natureza – que se impõem na configuração e dinâmica da realidade – não excluem nem a nossa liberdade nem a nossa responsabilidade, que é o seu corolário.

Mas voltemos mais especificamente ao Rito Escocês Antigo e Aceito, ou REAA.

O Rito Escocês Antigo e Aceito postula a existência de um Princípio Criador, fundamento espiritual do Universo.

Ao colocar o seu trabalho sob a invocação “Para a Glória do Grande Arquiteto do Universo”, os membros das Lojas que trabalham no REAA não estão a honrar uma entidade divina personalizada ou revelada, mas sim a exprimir a admiração que sentem pelo Mistério da Criação em ação no mundo.

Ao dedicar-lhe o seu trabalho, manifestam a sua intenção de se consagrarem, com e através do Rito, à realização dos ideais que o Espírito lhes inspira.

Não tendo qualquer tendência religiosa ou filosófica, o Rito permanece alheio a qualquer controvérsia sobre estes assuntos; e a sua neutralidade e universalidade significam que ele os transcende a todos. O Rito deixa aos seus membros a liberdade de determinar e praticar as suas convicções em privado, o que não lhe diz respeito.

Pelo contrário, exorta-os a darem pleno alcance à sua liberdade de consciência e a terem confiança na perfectibilidade do Homem.

O Rito oferece aos seus seguidores um caminho tradicional de iniciação em trinta e três graus, permitindo-lhes construir a sua vida interior em direção a uma espiritualidade cada vez maior.

Este caminho é expresso pelo princípio ternário “Força – Sabedoria – Beleza”, conhecido desde o Primeiro Grau, e convida-nos a abraçar a harmonia, a correção e a ordem em vez da desordem e do caos.

Este é o significado primário do lema ORDO AB CHAO, pelo qual o Maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito reconhece a existência de um Princípio de Ordem em ação no Universo, que também poderia ser chamado de Princípio da Unidade.

O Rito encoraja-nos a sentir a unidade da Vida, para além da diversidade e multiplicidade das formas, o que nos leva naturalmente a tornarmo-nos solidários com toda a existência.

O Rito convida-nos a reconhecer a Unidade para além das dualidades aparentes, por exemplo, o preto e o branco dos mosaicos das lojas simbólicas, ou o Esquadro e o Compasso, o Sol e a Lua, mas também a Terra e o Céu, o corpóreo e o espiritual.

O Rito Escocês Antigo e Aceito encoraja-nos a voltar o nosso olhar para a Luz e a agir concretamente no mundo. É importante que o despertar espiritual induzido pelo Rito se concretize no aqui e agora da vida quotidiana, bem como no compromisso pessoal e responsável de cada um de nós para com a comunidade.

Como encara então o laicismo, que alguns maçons e algumas denominações maçônicas fazem parte essencial do seu compromisso?

Para dizer a verdade, os maçons do REAA consideram-se defensores acérrimos do laicismo, não no sentido de lutar contra todas as ideias religiosas, mas no sentido de garantir aos crentes e aos não crentes o mesmo direito à liberdade de expressão das suas convicções, e no sentido em que o laicismo garante o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar ou deixar de a ter.

Esta é a definição dada pelo Ministério do Interior francês em 2017.

Para aqueles que pensam que vão encontrar aqui vitupérios contra o véu islâmico ou os menus hallal nas cantinas escolares, subsídios para escolas confessionais ou a posição tomada por algum dignitário religioso sobre o casamento gay, pedimos desculpas antecipadamente: não haverá dúvida disso.

Não é que estas questões não mereçam ser discutidas, nas colunas dos jornais, no hemiciclo da Assembleia Nacional ou muito simplesmente entre os cidadãos dos nossos países.

Mas esses debates não têm lugar nos templos maçônicos do REAA.

De fato, estas questões estão no ponto de encontro de dois universos, porque são fraturantes, dividem mais do que unem e são, em grande parte, fonte de querelas, sejam elas políticas ou religiosas.

O ideal que inspira os maçons é inequívoco: contribuir para uma maior fraternidade entre homens e mulheres livres e iguais.

Repetimos: por espiritualidade, entendemos a procura de sentido, de esperança ou de libertação e as abordagens que lhe estão associadas.

Sem dúvida devido à forte influência da nossa cultura judaico-cristã, a espiritualidade é mais ou menos frequentemente confundida com a religião, com a fé.

É claro que existe uma espiritualidade religiosa. Esta baseia-se na aceitação e na crença inquestionável num conjunto de verdades imanentes.

Mas a espiritualidade pode ser facilmente entendida como estando no domínio da metafísica, ou seja, uma busca racional de conhecimento, conhecimento das causas do universo e dos primeiros princípios.

Neste sentido, a espiritualidade tem mais a ver com raciocínio do que com crença, mais com trabalho do que com fé.

Concordemos então que a abordagem espiritual é a expressão de uma aspiração tão antiga como a própria humanidade e que existia muito antes das instituições religiosas.

Depois de vários séculos de uma espiritualidade quase exclusivamente religiosa, o aparecimento da filosofia, o declínio da adesão às grandes correntes religiosas e a transição para uma sociedade dita “pós-moderna” levaram muitos investigadores a afirmarem fazer parte de uma espiritualidade sem pertencerem a uma instituição religiosa ou a uma crença religiosa particular.

Entre estes investigadores contam-se o filósofo Vladimir Jankélévitch, que tentou aproximar-se o mais possível dos fundamentos de uma espiritualidade comum a todo o género humano, uma espécie de “filosofia primeira”; e o filósofo, sociólogo e historiador da religião Frédéric Lenoir, que explica

“Crentes ou não, religiosos ou não, todos somos mais ou menos tocados pela espiritualidade, a partir do momento em que nos interrogamos se a nossa existência tem um sentido, se existem outros níveis de realidade ou se estamos empenhados num verdadeiro trabalho sobre nós próprios”.

É, portanto, um tema sobre o qual temos todo o direito de refletir, independentemente das nossas convicções metafísicas pessoais.

Quanto ao laicismo, inspiramo-nos para o definir num documento oficial, o relatório apresentado ao Presidente da República em 2003 pela Comissão presidida por Bernard Stasi.

Vale a pena recordar aqui o primeiro artigo da lei de 9 de Dezembro de 1905 (França) sobre a separação da Igreja e do Estado:

“A República garante a liberdade de consciência. Garante o livre exercício dos cultos, apenas com as restrições adiante fixadas no interesse da ordem pública”.

A laicidade não pode, pois, reduzir-se à neutralidade do Estado, entendida no sentido da independência dos poderes públicos e das diversas opções espirituais ou religiosas no espaço público.

De fato, o princípio da laicidade e o direito não se opõem de modo algum a que os representantes das diferentes opções espirituais, religiosas ou filosóficas tenham o direito de participar, segundo regras explícitas e equitativas, no debate público, como qualquer outra componente da sociedade.

Assim, a laicidade parece assentar em quatro princípios fundamentais: a garantia absoluta da liberdade de consciência, o respeito pela diversidade das opções espirituais, a prática da tolerância partilhada e sem limites e a vontade de construir um quadro de relações sociais que constitua a base do espaço comum.

Para resumir o sentido das duas palavras do título deste artigo, com André Comte-Sponville, que defende uma espiritualidade sem Deus, sem dogmas e sem Igreja, que nos protegeria tanto do fanatismo como do niilismo, podemos definir a espiritualidade como a tomada em consideração de todas as possibilidades do espírito, uma posição filosófica demasiado fundamental para ser abandonada aos fundamentalistas de todos os gêneros. Tal como o laicismo é demasiado precioso para ser desviado pelos anti-religiosos mais frenéticos.

Para Luc Ferry, é o amor que dá sentido à nossa vida no mundo atual. Para além do humanismo do Iluminismo e dos seus críticos, para além de Kant e Nietzsche, uma nova espiritualidade secular nasce da sacralização da humanidade através do amor.

Assim, mesmo que seja verdade que os maçons do REAA colocam a Bíblia nos altares dos Templos em que se reúnem, abrindo-a no Prólogo do Evangelho de João, consideram este Livro como o símbolo da Tradição.

E é claro que não devemos confundir laicismo – que é uma posição política militante – com laicidade, que é uma opção ética e filosófica.

Deixemos cada um a sua opinião e voltemos ao que se passa na loja. Talvez seja necessário recordar aqui que os rituais partilham com a República o lema “Liberdade – Igualdade – Fraternidade”.

Não se trata apenas de palavras lançadas ao ar, nem de um encantamento banal. Os maçons são extremamente ligados aos valores fundadores da República: liberdade, igualdade – ou melhor, equidade – e fraternidade. E acreditam que aqueles que têm um Soberano para garantir as liberdades dos cidadãos podem partilhar estes valores sem fazer deles um lema republicano…

Em matéria de liberdade, têm o cuidado de evitar tudo o que possa comprometer a liberdade de expressão, a liberdade de consciência ou, no caso da espiritualidade, a liberdade de crença. É deste apego à liberdade de consciência e às concepções metafísicas que deriva o seu compromisso inabalável com o princípio do laicismo.

Para os maçons do REAA, o laicismo não é uma guerra contra a religião, nem a religião em geral, nem – muito menos – a estigmatização de uma religião em particular.

Pelo contrário, o verdadeiro laicismo exige o respeito por todas as religiões e espiritualidades, sejam elas de inspiração religiosa ou não.

Ser laico é estar aberto à coabitação de todas as pessoas, tanto as que acreditam como as que não acreditam num deus revelado. No entanto, é preciso dizer que a maior parte das ideologias filosóficas, religiosas, políticas e econômicas demonstraram a sua inadequação, os seus limites ou o seu fracasso nas últimas décadas.

Face à globalização materialista, que desestabiliza ou desenraíza os indivíduos, arruína os países, perverte as relações internacionais e exacerba os extremismos de todos os lados, o Rito Escocês Antigo e Aceito, tal como é praticado, oferece um caminho para a realização pessoal e coletiva, um caminho de esperança para os nossos contemporâneos em busca de sentido e de perspectivas existenciais, um caminho que se abre para uma renovação do pensamento espiritual e da ética.

Por fim, seria inútil pensar sem agir. Consequentemente, o caminho espiritual e humanista proposto pelo Rito Escocês Antigo e Aceito e, mais amplamente, pela Maçonaria, é um caminho de compromisso e de ação.

Jean-Jacques Zambrowski

Tradução de António Jorge, M∴ M∴

Fonte

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