A ética e a Maçonaria

Desde a antiguidade que o homem se confronta com o dilema do ser e do dever ser, e sempre se questionou sobre a forma de se aproximar e de se conformar da melhor maneira possível a um modelo de perfeição, que se considera existir fora do domínio terrestre, por definição limitado e comprometedor, barreira que poucos escolhidos conseguem ultrapassar.

Todas as escolhas da humanidade devem, de facto, ser inspiradas por princípios éticos que lhe forneçam um guia válido e aceitável, se não para todos, pelo menos para uma maioria.

Aliás, hoje em dia, esta necessidade imprescindível é mais do que nunca sentida em toda a parte, desde os fóruns mais elevados e qualificados, aos meios de comunicação social e nas conversas quotidianas das donas de casa nos mercados, o uso da palavra moral é cada vez mais frequente como um anseio de catarse, de redenção não só da degradação materna e ambiental, mas como um objectivo para alcançar uma nova Cidade do Sol, tanto mais desejável quanto é vista como uma utopia.

De facto, a moral é uma palavra mais facilmente compreendida pelo grande público do que a ética, legado dos estudiosos, que é tomada como sinónimo da primeira. No entanto, para os entendidos, ética deriva da palavra grega “ethos” que significa “costume”, ou seja, as regras de conduta aprovadas e aceites pela comunidade.

A moral – afirma Nicola Abbagnano – não é só uma: os povos e as civilizações têm morais diferentes e, mesmo no contexto de uma mesma civilização, a moral muda com o tempo. À medida que mudam os costumes, mudam também os padrões aceites de conduta geral e a avaliação desses costumes de acordo com as categorias do bem e do mal.

No entanto, mesmo que não se possa falar de uma moral humana universal, as diferentes culturas vêem-na como uma resposta às necessidades humanas fundamentais e, acima de tudo, à necessidade de sobrevivência do indivíduo e da comunidade que constituem.

A ética, ou ciência da moral, pode então ter a tarefa de determinar as condições gerais e os fundamentos que tornam possível a convivência e a colaboração do homem com os outros.

Esta moral, que em sentido estrito é humanista – para distingui-la da moral teológica -, articula-se em normas ou leis com a intenção de regular a conduta do homem em relação a si mesmo e aos outros: isto é, de actuar de modo a salvaguardar a sua própria vida num mundo melhor sem tornar essa mesma conduta impossível para os outros.

Emanuele Kant, cujas ideias são ainda hoje fundamentais, foi levado a teorizar sobre a necessidade absoluta das normas morais, na medida em que estas constituem mandatos da razão, que é a faculdade universal por excelência: tudo o que ela prescreve é válido para todos, em todos os tempos. A ética kantiana assenta em dois pontos fundamentais: a universalidade da moral, que a distingue de todas as outras normas, e a dignidade do homem, pela qual ninguém pode ser tratado como um meio ou um instrumento, ou seja, como um objecto. Há uma frase que resume de forma célebre o pensamento de Kant: a moral está dentro de mim, o céu estrelado está acima de mim.

O processo de amadurecimento da consciência e uma maior sensibilidade para os problemas que a sociedade actual enfrenta levaram legiões de indivíduos a centrar a sua atenção na ética como a chave da moralidade indissociavelmente ligada à dignidade do homem.

Todos os membros da sociedade e das instituições públicas acreditam que têm o direito de respeitar plenamente os mais elevados padrões de conduta estabelecidos pelas sanções previstas nas nossas leis penais, que são mutáveis consoante o tempo, o lugar e o governo do momento.

Por outras palavras, sente-se a necessidade de que o comportamento dos indivíduos, sozinhos ou em associação, não seja influenciado pelo medo das sanções, mas sim estimulado pelo desejo de viver uma vida honesta (honeste vivere) que pressupõe a convicção mais íntima da validade de princípios morais inalteráveis.

Neste ponto, é necessário recordar a conhecida distinção entre ética teológica e ética humanista, a fim de entrar no cerne da análise da moral maçónica.

A moral teológica remete para a crença de Aristóteles de que tudo no mundo tem um fim último que é Deus, pura actividade, pelo que a finalidade do homem é uma vida contemplativa que lhe permita alguma forma de participação na vida divina.

E, seguindo os passos de Aristóteles, os Estóicos adoptaram como princípio a moral de viver de acordo com a natureza, máxima que orienta o homem para esta participação, uma vez que a natureza é, para os Estóicos, a ordem perfeita e racional do mundo, a ordem do próprio Deus.

A ética humanista, por outro lado, não baseia a moralidade numa relação entre o homem e uma realidade superior, mas sim nas necessidades do próprio homem, a primeira das quais é a sobrevivência. A ética humanista atribui, portanto, à moral a função de garantir a sobrevivência do homem e da comunidade, mas não a sobrevivência do homem visto como um animal, mas sim como um ser consciente e racional, e a comunidade como a coexistência e a livre colaboração desses sujeitos.

Além do mais, esta concepção, que é basicamente utilitarista, foi, como vimos acima, elevada ao estatuto de um mandato da razão, que é a chave da natureza humana. Assim, o homem é razão, mas também sensibilidade, e com a lei moral, a razão ordena-lhe que ponha de lado esses impulsos sensíveis e adapta-o à universalidade que lhe é particular.

Mas, se a natureza sensível do homem nunca pode ser anulada, o ajustamento às leis nunca pode ser completo, no sentido em que o homem pode legitimamente aspirar à felicidade, na medida em que tem direito a ela pelo seu respeito pela moral, mas neste mundo nunca pode atingir uma vida moral perfeita, apenas se aproxima vagamente dela.

Chegámos, então, ao conceito moral que está no coração da Maçonaria. Esta é uma instituição de carácter iniciático que só aceita homens livres e decentes, desejosos de se melhorarem e de trabalharem para o bem e o progresso da humanidade.

A cerimónia de Iniciação marca um abismo intransponível na vida do iniciado, que deixa irreversivelmente para trás a vida dita profana, com todas as suas impurezas e imperfeições, para se projectar numa dimensão luminosa em que aspira – e é ajudado – a libertar-se de toda a escória.

Como em todas as comunidades iniciáticas, incluindo a Maçonaria, a crença num Ser Superior de onde tudo provém e para onde tudo retorna, é fundamental, na medida em que a consciência do Maçom não pode deixar de se colocar numa relação indissolúvel com essa Entidade.

E a forma de se aproximar desse Ser Supremo é através da sabedoria, que constitui o cume da felicidade humana, pois permite ao homem contemplar as verdades mais elevadas que tornam a sua vida semelhante à de Deus.

Mas a sabedoria só é alcançada através do conhecimento que o iniciado pode adquirir ao libertar-se das trevas do vício, da ignorância, do egoísmo e das armadilhas da sua própria condição terrena. Como nos frontispícios dos templos gregos, as palavras Conhece-te a ti mesmo dominam também os nossos templos maçónicos.

A Maçonaria Universal tem como objectivo a perfeição pessoal e a elevação moral e espiritual do homem e da família humana. Para atingir tão sublime objectivo, tem os seus próprios métodos através do uso de rituais e símbolos, pelos quais exprime e interpreta os princípios, ideais, aspirações, ideias e intenções da sua própria essência iniciática (IV ponto dos Princípios de Identidade do Grande Oriente de Itália).

Ultrapassadas as quatro provas da viagem simbólica de purificação através da terra, da água, do ar e do fogo, realizada num ritual que renova uma antiga tradição, o iniciado é colocado em condições de se lançar na busca da verdade em total liberdade, fazendo uso da razão finalmente liberta de todos os resquícios de preconceito.

Neste trabalho de análise do seu próprio ser, das suas origens e do seu destino supremo, o Iniciado é auxiliado por vários princípios morais que lhe foram claramente explicados antes de passar pelas quatro provas, para que possa decidir livre e espontaneamente.

No ritual de iniciação ao grau de Aprendiz do Grande Oriente de Itália do Palácio Giustiniani, o Venerável Mestre explica ao profano os conceitos que a Maçonaria tem sobre vários princípios morais e esclarece-o de que:

Para nós, a Liberdade é o poder de fazer ou não fazer certas acções de acordo com a nossa vontade e o direito de fazer tudo o que não é contrário às leis morais e à liberdade dos demais.

A moral é a lei natural, universal e eterna que guia todo o homem inteligente e livre. Ela permite-nos aprender quais são as nossas obrigações, bem como o uso racional dos nossos direitos, tornando-se o mais puro dos sentimentos do coração para assegurar o triunfo da razão e da virtude.

A virtude – que, segundo a etimologia da palavra, significa força – é a força para cumprir as obrigações, a partir da sua posição, para com a sociedade e a família em todas as ocasiões. Deve ser exercida com altruísmo e não deve ser refreada perante o sacrifício ou a morte.

O vício, pelo contrário, é toda a concessão feita ao interesse e à paixão em detrimento dos deveres; é um perigo contra o qual é necessário armarmo-nos com toda a força da razão e toda a energia do carácter. É assim que nos reunimos nos nossos Templos para pôr fim às nossas paixões, para nos elevarmos acima dos interesses vulgares e para aprendermos a apagar o ardor dos nossos desejos anti-sociais e imorais. Temos de trabalhar incessantemente para nos aperfeiçoarmos, pois só controlando as nossas inclinações e os nossos hábitos é que podemos atingir o justo equilíbrio que constitui a sabedoria que é, por sua vez, a chave da vida.

É este contraste entre a virtude e o vício que é recordado aos Irmãos, de cada vez que se abrem os trabalhos do Templo no Grau dos Aprendizes, quando o Venerável Mestre pergunta: para que nos reunimos? e o Primeiro Vigilante responde: para construir Templos de Virtude, para cavar profundas e escuras masmorras para o vício e para trabalhar para o bem e o progresso da humanidade.

Vemos, portanto, que o mandato kantiano da razão é utilizada para nos libertar dos restos de profanação (na linguagem simbólica da Maçonaria, esta ideia é representada pela imagem do polimento da pedra bruta), a fim de adquirirmos a sabedoria, essa ciência da vida que é sustentada pelo preceito solenemente transmitido ao profano pelo Venerável Mestre no final das quatro provas preparatórias da iniciação.

Durante a segunda prova, a da água, o Venerável Mestre recorda ao profano que só a fortaleza moral adquirida através da determinação e do sacrifício lhe permitirá lutar contra a adversidade. No final da prova final do fogo, o Venerável Mestre pronuncia o apelo solene: que o teu coração se inflame de amor pelos teus semelhantes, que este amor – simbolizado pelo fogo – marque as tuas palavras, os teus actos e o teu futuro!

Segue-se imediatamente a frase moral: “Nunca esqueçais este preceito universal e eterno: nunca façais aos outros o que não queres que te façam e faz aos outros o que queres que te façam”.

Aqui encontramos a característica particular da ética maçónica que combina admiravelmente a ética teológica e a ética humanista. O Maçom – que nos Templos e na vida profana trabalha para a glória do Grande Arquitecto do Universo, isto é, o Ser Supremo que é a origem e o destino de tudo – deve caracterizar a sua vida pelo respeito por si próprio e pelos outros, controlando sabiamente o sentimento de egoísmo, profundamente enraizado em cada homem, para a sua própria purificação.

Por outras palavras, o objectivo do Maçom na busca de si próprio é atingir a perfeição que só pode ser encontrada no Ser Supremo, mas, consciente da sua própria natureza de homem pertencente a uma comunidade angustiada nos seus próprios dramas existenciais, ele exalta o egoísmo – que finalmente se tornou uma qualidade positiva – no altruísmo reconfortante de doar os seus próprios vitais espirituais aos seus semelhantes.

Deste modo, a extraordinária mensagem de amor que o Venerável Mestre lhe confiou para difundir, entra em acção, o que, em contraste com o Vício, lhe permite ajudar o resto da humanidade a viver pacificamente de acordo com as leis morais do respeito e da dignidade para todos e a projectar-se numa nova dimensão de luz e de verdade, que é divina.

O caminho espiritual do Maçom na sua própria consciência e no seu compromisso de amor para com a humanidade é difícil, mas ele sabe que para além dos muros do Templo, onde se reúne com os seus Irmãos numa cadeia invisível de energia que o enriquece através da purificação, existe um céu estrelado, essa dimensão misteriosa para a qual Pitágoras nos incitava a olhar e onde só a consciência de um homem puro pode aninhar-se.

Virgílio Gaito – Ex-Grão-Mestre do Grande Oriente de Itália

Tradução de António Jorge, M∴ M∴

Fonte: https://www.freemason.pt/