A natividade no cotidiano - 2014

 

A data 25 de dezembro é para vários povos e civilizações o marco do nascimento do Deus Sol, do Dia de Luz, da Vida. Assim, nesta data, muitos são os ritos da natividade praticados na atualização do mito. Para os cristãos, 25 de dezembro é a data comemorativa do nascimento do Amor, do Deus Amor. O amor que se fez criança, que se fez menino, que se fez homem, que se deixou amar e que amou.

 

Entretanto, embora a palavra amor seja tão presente no nosso cotidiano, raramente alguém se ocupa de refletir sob o seu significado e de apontar o seu sentido exato. Assim é que ouvimos afirmativas as mais diversas, em que o verbo amar ou o substantivo amor se faz presente com significados, muitas vezes, conflitantes. Por exemplo: “Matou por amor”; “Morreu de tanto amar”; “Suicidou-se por amor”; “Não trabalha, não estuda, vive do amor de uma mulher”; “Eu amo aquele homem, mas ele só me faz sofrer”; e muitas outras.

 

O amor e/ou o amar são apresentados nestas afirmativas exemplificadoras, tão comuns, como causa de crimes contra o outro ou contra si mesmo. O amor e/ou o amar são também apresentados como justificativas da exploração de um pelo outro.

 

Se fossemos nos alongar, apresentando as tantas outras presenças do amor ou do amar, esta nossa breve intervenção não mais seria uma simples mensagem, mas uma coleção de livros.

 

Só para lembrar, a extensão deste Arco Íris, citemos o amor compaixão dos budistas, o amor pelo igual nos clássicos gregos e tão praticado na contemporaneidade como algo comum, o amor como revelação da face, o amor compensação das carências... A lista ou o caminho é muito longo até chegar ao amor do Cristo. 

 

O amor do Cristo se dá como um chamamento à acolhida da inteireza do outro e de si mesmo. É preciso que eu seja capaz de me amar, para poder amar o diferente, o estranho, o próximo... como se queira denominar o outro.

 

Amar a si mesmo, não é apenas acolher o que existe de bom e útil em si mesmo - o lado de luz. É preciso, também, acolher - para poder fazer a passagem - ao que existe em nós que não apreciamos. Acolher as nossas limitações e fraquezas - o lado da sombra.

 

Para ultrapassar a sombra, o nosso deserto, é necessário olhá-la de frente, não a esconder. Em verdade, somos fortes e somos fracos. Somos heróis e somos covardes. Somos presentes e somos omissos. Somos sadios e somos doentes. Somos masculinos - vigor - e somos femininos - ternura. O mundo é tudo isto, e não fazemos apenas parte do mundo, somos uma célula do mundo que contém em escala menor tudo que o mundo contém em grande escala.

 

A Tradição resume tudo que foi acima escrito em uma simples sentença: o que existe em cima é igual a que existe embaixo.

 

Amar o nosso inimigo não é apenas um convite a perdoar a quem nos faz o mal; mas, em primeiro lugar, acolher o que em nós mesmos não aceitamos. Desde um fio de cabelo branco, que nos informa a proximidade da páscoa, até uma fraqueza moral.

 

Não é por acaso que a Tradição informa: o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. Assim, por exemplo, a não aceitação da idade adulta (apego à eterna juventude) é muito mais devido ao medo do que ela provoca e não permite mais, do que ao ódio à velhice. Amar em nós a idade adulta é aceitar não só as vantagens (a luz), mas as limitações (a sombra) que ela nos traz.  

 

Citemos, ainda, um vício tão comum entre nós: o consumo do álcool. É preciso se reconhecer alcoólatra para se ter a passagem pelo alcoolismo. Beber escondido, ou dizer que bebe apenas socialmente, é não acolher esta parte de si mesmo. Rejeitá-la, apenas nos torna mais fracos.

 

A Tradição cristã franciscana nos informa que os cidadãos de uma localidade eram frequentemente vítimas de ladrões. Várias prisões foram realizadas, mas os crimes se repetiam com novos autores. Até que São Francisco recomendou que se deixasse em um lugar público alimentos e dinheiro para os necessitados. Os roubos foram diminuindo, até que os ladrões se converteram e se tornaram frades.

 

Frei Leonardo Boff comenta este relato, brincando e fazendo os ouvintes rirem, com as seguintes palavras: é por esta razão que até hoje existem ladrões entre os franciscanos.

 

Se não é possível acolher a nossa própria inteireza, como acolher a inteireza do outro? Como amar o outro, sabendo de prévio aviso que tudo é passível de uma grande ingratidão? O Cristo na cruz é um alerta perene.

 

Por fim, a Tradição informa, ainda: tudo que é composto se decompõe com o tempo. Assim ter apego pelo transitório é, não só perder a oportunidade de viver verdadeiramente e amar uma grande ilusão, é, principalmente, alimentar uma fonte de sofrimento.

 

No dia 25 de dezembro costumamos, quando possível, nos reunir em família. Alguns têm a graça de ter ao seu lado a bem amada. Em muitas, a marca do tempo se faz presente, mesmo que escondidas pelos cosméticos e tintas. É necessário neste instante, e sempre, acolhê-la pelo que ela é agora, não pelo que ela foi ou pelo que ela representa. A amar a presença na pessoa amada.

 

Desde as civilizações mais antigas, passando pelos egípcios e hebreus, canta-se nas noites de bodas um cântico que, atualizado pela tradição semítica, apresenta-se assim:

 

"Eu sou negra, todavia sou bela,

Ò filhas de Jerusalém.

Sou como tendas de Cedar, como os pavilhões de Salma".

 

Padre Leloup nos informa que as tendas de Cedar eram tendas armadas no deserto pelos nômades cedarenses, cobertas de peles queimadas pelo sol e enegrecidas pela violência do vento. Enquanto que os pavilhões de Salma eram tendas leves, brilhantes, enfeitadas com bandeiras de todas as cores.

 

Devo ter olhos do poeta para ver na minha bem amada que “ela é cheia de cores frescas e ao mesmo tempo enegrecidas, pela vida que levou e pelas feridas que a vida lhe deu”. Compreender que ela está ferida, que ela está negra, mas é bela.

 

Todavia, é claro, para ter esta compreensão é preciso que eu enxergue que sou como tendas de Cedar, como os pavilhões de Salma. Estou ferido, estou negro, mas sou belo. Aceitar minha inteireza, para poder aceitar a inteireza do outro. E é precisamente nesta acolhida mútua do bem amado e da bem amada, nesta relação respeitosa e plena de compaixão, que o amor existe.

 

Amado Irmão, Amada Irmã, não espere o tempo passar para adquirir esta compreensão do significado da natividade do Cristo em você. Viva plenamente sua inteireza. Não sofram pelas suas fraquezas, elas estão ai para ser acolhidas e lhes ensinar a enxergar melhor o outro; aprendendo a amar a tudo e a todos com os olhos da compaixão, da misericórdia. Com um olhar e um sorriso de criança que sempre existirá em nós.

 

Podemos olhar para o céu como crianças que fomos e vemos, diferentemente dos cientistas, que o Sol nasce, vive e morre para nos iluminar. Mas, só por um breve instante, ao meio dia, não existe uma sombra a nos acompanhar. Neste momento a sombra foi suprimida, vivemos um instante de pura luz.

 

Meu amado irmão, minha amada irmã, com este olhar de criança, desejo que neste próximo dia 25 de dezembro seja um momento de plena e Pura Luz nas suas vidas, de modo que a natividade atualizada – o nascimento do Deus Amor - esteja presente no nosso cotidiano.

 

Hiran de Melo

Fonte:  https://hiranmelo.blogspot.com.br/2014/12/a-natividade-no-cotidiano-2014.html