À Porta! (a função do cobridor)
Para um Venerável Mestre, quando “desce” do cargo, essa descida não se limita ao seu aspecto ritualístico e se traduz em uma série de vantagens e desvantagens, cuja natureza varia, em nossa opinião, dependendo da personalidade de cada um.
Para começar, gostaria de dizer que, para o futuro ex-Venerável Mestre, é necessário ter de considerar o exercício desta função, e eu encontrei diversos Veneráveis Mestres que, longe de serem os mais narcisistas, não desejavam ocupar o cargo de Cobridor. Pode sempre, certamente, existir várias razões para não assumir uma função, mas no ritual de instalação do colégio de oficiais é dito que é geralmente o ex-Venerável Mestre que ocupa essa posição; é que alguma parte da instrução maçônica se baseia discretamente na necessidade Iniciática que ele teria de passar por esta etapa. É também a única articulação semântica direta que faz o referido ritual entre duas funções da loja: para as outras funções, o ritual se contenta em esclarecer a função em si, sem maiores digressões e sem referência a uma outra função.
O ritual lembra a humildade necessária que o ex-Venerável deve ter, ou pelo menos aprender com a migração de uma posição mais solar para a posição dita a mais humilde. Assim, a função de Cobridor é bem menos comum e, portanto, menos humilde do que se possa pensar: primeiro tem-se que deixar algumas migalhas de privilégio ao pobre ex-Venerável, às vezes adoçar um pouco a sua angústia, e é por isso que o Cobridor pode se dirigir diretamente ao Venerável Mestre sem passar pelos Vigilantes. Mais a sério, é uma forma simbólica de afirmar sua capacidade de não precisar de uma transmissão de palavra triangulada, portanto, dominar suficientemente aquilo que precisa ser dito, como dizer, e não precisar mais adquirir a temperança necessária para esta abordagem.
Bem entendido, estas virtudes acordadas ao Cobridor originam-se tanto de sua função quanto da real capacidade daquele que a ocupa de ter superado ou não este obstáculo. Além disso, durante a cerimônia de posse, o Cobridor presta juramento no Altar, na mesma condição dos principais oficiais da Loja, e não é apenas nomeado entre as colunas. Sua instalação não se faz “por último”, como se se atribuísse uma lógica linear ao desenrolar da cerimônia, mas “sob cobertura” dos outros oficiais tendo jurado, uma posição que confirma sua qualidade de defensor da loja e de seus ocupantes, mas igualmente suas prerrogativas de ex-Venerável Mestre.
Há, portanto, uma pequena ambivalência, mas esta é necessária; no ritual de instalação entre o espírito e a letra, a letra quase qualifica o Cobridor como recluso, e o espírito que lhe empresta, ao contrário das prerrogativas, um papel menos visível, mas também estrutural. Convém atentar para esta ambivalência quando queremos entender melhor a progressão maçônica: de fato, a ambivalência de um fato não é a transformação de um significado, ela é adicionada por aquele que teria evoluído para outro significado possível.
Quanto ao restante, não passam de questões de caráter, mas nada, em todo caso, será definitivo. Esta separação aparente entre as funções de Venerável Mestre e de Cobridor, muito distante, é até mesmo um pouco caricatural em sua formalização moralista, tal como vista no ritual, não terá de igual, na minha opinião, a não ser a diversidade e a nuance de comportamentos diante desta tradução simbólica desde o Oriente em direção ao Ocidente. Falamos somente de tradução e não apenas de descida, porque o Cobridor normalmente está localizado no ocidente de sua loja, mas também deslocado em direção ao norte e não no centro ou em direção ao sul. Podemos ver nisso um meio de se apoiar sobre o caráter discreto, de contenção necessária, que o novo Cobridor deve, a partir de agora, aplicar quanto à sua influência sobre a loja, posição ao norte que lhe permite meditar sobre a relatividade das coisas. Vemos aqui a necessidade de, desculpem o neologismo, não “frontalizar” a relação entre o Venerável Mestre atual e o Cobridor, e “suavizar” esta ligação se isso for necessário. Já observamos, de fato, em lojas de diferentes graus e de todos os gêneros, a atitude latente de um Cobridor cioso de suas antigas prerrogativas, de desafiar a autoridade do Venerável Mestre através de intervenções tão numerosas quanto inúteis.
A espada que o Cobridor possui não deve ser dirigida para o interior da loja, mas para fora e, usando uma metáfora um pouco simplista, lutar contra demônios externos, porque agora estamos em um ambiente fechado, onde as divergências, se tiverem que existir, devem permanecer ligadas ao exercício iniciático, e não são, portanto, de responsabilidade do irmão Cobridor. A espada não é realmente portada pelo cobridor, a não ser quando ele se levanta, se aproxima da porta da loja, seja para sair da loja para verificar a regularidade da abertura dos trabalhos, ou a regularidade de um irmão que chega.
O Cobridor está, assim, de certa forma armado para um eventual combate contra elementos capazes de perturbar o bom andamento dos trabalhos. Ele pode passar instantaneamente do meio sagrado ao ambiente profano, o que demonstra, nele, a necessidade de maturidade iniciática. É algo, acreditamos, sobre o que se deve meditar, em relação à constância com que um iniciado deve fazer prova diante da variabilidade de seu ambiente.
Encontramos, no colar usado pelo irmão Cobridor, aquilo que no ritual de instalação significa um elo existente entre o Venerável Mestre e o Cobridor, ou seja, uma espada flamejante, uma relíquia do passado recente, em que todos os outros oficiais carregavam o emblema da sua função do momento.
Há, portanto, sem insistir demais sobre este ponto, alguma coisa no estabelecimento da ligação virtual com o Venerável Mestre – Cobridor que se origina da vigilância e da intemporalidade e, portanto, de uma possível abertura sobre o espiritual incorporada à temporalidade necessária de outras funções. Um último ponto é o sentimento subjetivo e variável, inclusive em um mesmo indivíduo, que desperta o local ou o assento do Cobridor. É o sentimento de ser o irmão mais isolado da loja, não só do Venerável Mestre, mas também do conjunto de irmãos, a posição ocupada pelo Mestre de Harmonia variando de uma loja para outra.
Existe um duplo aspecto relacionado com este sentimento: primeiro, um lado incontestável de “descanso do guerreiro” acampado no fundo, ou à entrada da loja, dependendo como isso é entendido e que permite abarcar o conjunto da loja; depois há também, e este é certamente o que provoca às vezes intervenções excessivas de parte do Cobridor, um sentimento de “aposentadoria” compulsória.
O amplo espaço de movimentação diante do Cobridor, aliado a esta incontrolável impressão de estar preso ao Ocidente poderia levar a se pensar em um esplêndido sentimento de isolamento.
É verdade que a posição do Cobridor pode ser sentida como uma espécie de exílio, se ele considera que a sua terra natural era o Oriente, mesmo que, nós maçons, saibamos não sermos proprietários de nenhuma das funções simbólicas.
O exílio evoca um estado de “aposentadoria” e pode, portanto, levar ao fortalecimento de todos os instintos, com o risco de vê-los exacerbados. Esta necessidade favorece a interiorização daquilo que se conheceu, seja favorecendo a idealização dessa mesma lembrança, e é lá onde está o perigo.
Voltemos ao Antigo Testamento: tanto o Êxodo quanto o Exílio nos dão a imagem de uma fuga sem retorno, ambos devem ser abordados como um todo, como dois pontos ligados por um traço; o antes e o depois. Assim, o Exílio pode exacerbar as ligações pelas lembranças de uma pertença roubada e pela esperança de um retorno, o que não corresponde, é claro, ao que se precisa esperar dessa função.
* Didier Thierry
Tradução: José Filardo
Fonte: Revista BIBLIOT3CA