A RELAÇÃO PARTICULAR DA CRIANÇA COM A RELIGIÃO

No primeiro ano de vida, quando ainda não é possível aprender a pensar e falar, o que está em primeiro plano é o aprendizado do andar e a adequação do metabolismo, partindo do leite materno, o melhor tolerado, até os alimentos normais do dia a dia, passando por muitas etapas intermediárias. Mesmo quando, no segundo ano de vida, começa a aquisição da linguagem e quando a criança diz conscientemente ‘eu’ para si mesma, iniciando o aprendizado do pensar, toda a configuração da criança evidencia que, até os primeiros anos escolares, predomina a atividade metabólico-motora no amadurecimento corpóreo.

Crianças nessa faixa etária são puros seres volitivos. Na fase do engatinhar, elas colocam tudo o que lhes cair nas mãos na boca, elas dormem muito, mesmo durante o dia e, quando deixadas a sós, preferem estar em movimento. Elas imitam o que de interessante percebem ao seu redor e tentam fazer com que tudo o que esteja à sua volta entre em movimento, puxando a ponta da toalha de mesa, girando botões e querendo participar de tudo, o que nem sempre convém aos adultos. Essa alegria de colocar algo na boca, de pegar alguma coisa e estudá-la, de ir em direção a algo provoca um ‘comportamento religioso’ profundamente inato e relacionado com o desenvolvimento do sistema metabólico-motor e da capacidade volitiva vinculada a ele.

Rudolf Steiner cunhou uma expressão adequada para esse comportamento da criança em idade pré-escolar: corporalmente, a criança tem um comportamento religioso. No comportamento humano, somente na infância conseguimos observar essa entrega plena ao meio circundante, ao exemplo de outras pessoas, ao alimento, à brincadeira. Aliás, não há outra maneira de a criança aprender a andar, falar e pensar, sem que tome para isso o exemplo da atitude humana. A criança vive totalmente entregue à existência de outras pessoas e, muitas vezes, imita tão profundamente que, por um tempo, até começa a mancar quando, por exemplo, o avô tão querido também manca. Aquilo que mais tarde o adulto tenta realizar no aspecto anímico-espiritual, como a entrega religiosa ou quando procura atender a determinados preceitos para estruturar sua vida (‘imitar a vontade divina’), nem de longe tem a intensidade da atitude dedicada da criança. A religiosidade nessa forma mais perfeita só conseguimos observar em nível corpóreo nas crianças.

Essa comparação, todavia, pode ser aprofundada. Se não houvesse evangelho, se não existissem escritos sobre o cristianismo, os passos evolutivos das crianças nos três primeiros anos de vida nos ensinariam em toda a extensão o que significa tornar- se humano, no sentido mais elevado da palavra.

Pois a primeira coisa que o ser humano faz a partir de um impulso próprio, ainda antes de saber algo a seu respeito, ainda antes de dizer ‘eu’ para si mesmo, é erguer-se sobre os próprios pés e arriscar os primeiros passos. O adulto que observa a criança tem diante de seus olhos a primeira coisa que ela aprende: ‘trilhar seu próprio caminho’, ela mesma conduzindo seus passos.

 

A segunda coisa é o aprendizado da fala. Uma das peculiaridades mais fascinantes da evolução infantil é que, nesse segundo ano de vida, quando predomina a aquisição da fala, enquanto a atividade mental ainda é inconsciente, a criança é incapaz de mentir. Aprender a falar significa sempre dizer diretamente ‘nada mais senão a verdade’, expressar a relação direta entre si e o meio circundante. Quando se estabelece o pensar, simultaneamente começa a capacidade de lembrar e, consequentemente, a ‘vida’ inteiramente pessoal da criança ‘nesse seu pensar’, sua possibilidade de atuar de modo puramente espiritual. A criança realiza no nível corpóreo e anímico o que o Cristo diz sobre si mesmo no Evangelho de João: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,6).

Michaela Glöckler

Publicado em: https://www.antroposofy.com.br/