A rendição como liberdade suprema.

Talvez a felicidade verdadeira seja isso mesmo: um riso compartilhado, uma cerveja gelada num dia quente, a certeza de que apesar dos pesares se amou um dia com sinceridade. Talvez a felicidade esteja na leitura de um bom livro regada a um chocolate quente com canela. Talvez a felicidade esteja numa brincadeira entre amigos, num olhar de cumplicidade. Talvez a felicidade não seja nada demais nem grandiosa como imaginamos. 

Muitos imaginam a liberdade como a possibilidade de se fazer o que se deseja. De viver de acordo com as próprias aspirações, assumindo para si mesmo e para os outros o seu eu mais verdadeiro demaquilado.

Para outros a liberdade vai além de realizar desejos e se viver como se bem entende. A liberdade é o desprendimento do próprio desejo. É diminuir a ansiedade em relação ao que se quer. É querer com mais calma, com mais doçura. É querer sem prender. É querer sem impor. É querer sem se desesperar. Colocando num Português mais direto, é o famoso deixar rolar. É o famoso se acontecer, aconteceu.

É esperar menos de si mesmo. É esperar menos dos outros. É esperar menos da vida. É esperar menos pelo emprego ideal, a viagem dos sonhos, o parceiro "perfeito". É aprender a usufruir daquilo que a vida oferece. Num célebre filme do diretor inglês David Lean intitulado Quando floresce o coração, uma secretária americana e solitária viaja a Veneza em busca do romance ideal. Mas encontra um homem separado, que a deseja profundamente. Ela hesita diante do desejo dele e do desejo dela pois imaginou um tipo de situação ideal. A realidade fugia ao seu controle e entendimento. Numa das cenas mais realisticamente belas de amor ele afirma que ela parecia uma menina mimada pois sonhou com um filé, mas a vida estava lhe oferecendo um prato de ravióli.

Sim, nem sempre é possível viver um romance nas condições ideais ou fazer a viagem dos sonhos. Nem sempre é possível arranjar o emprego perfeito. Mas talvez seja possível transformar a realidade no melhor possível. Talvez seja possível viver com verdade e intensidade ao lado de pessoas que nos valorizam e nos aceitam como somos. Talvez seja possível extrair prazer e alegria dos momentos mais banais e comezinhos.

Talvez a felicidade verdadeira seja isso mesmo: um riso compartilhado, uma cerveja gelada num dia quente, a certeza de que apesar dos pesares se amou um dia com sinceridade. Talvez a felicidade esteja na leitura de um bom livro regada a um chocolate quente com canela. Talvez a felicidade esteja numa brincadeira entre amigos, num olhar de cumplicidade. Talvez a felicidade não seja nada demais nem grandiosa como imaginamos.

Tomando um banho de chuva depois de uma cerveja numa sexta à noite, não me importei de ficar molhada da cabeça aos pés. Talvez esta imagem seja o ícone da liberdade. Caminhar debaixo de chuva forte sem se importar. Sem pensar que vai ficar gripada. Sem pensar que os cabelos estão desarrumados, o rímel borrado. Caminhando sem pressa de chegar, sem tristeza por partir. Caminhando ao sabor do ritmo do mundo. Caminhando como alguém que está de passagem.

publicado em recortes por Sílvia Marques