A "Sociedade dos filhos órfãos"

 

Nestas férias de verão, entre as leituras que fiz, uma me tocou de modo especial. Trata-se do livro de Sergio Sinay, um estudioso dos vínculos humanos, que aborda um triste fenômeno do mundo em que vivemos hoje e ao qual ele se refere como a “Sociedade dos Filhos Órfãos”. Uma sociedade , segundo ele, caracterizada por uma “cultura da fugacidade, da superficialidade extrema, da banalidade, da vida light e desprovida de sentido, do prazer efêmero e a qualquer preço, das relações vazias, da conexão sem comunicação, da manipulação de consciências e sentimentos, do ocaso da responsabilidade, da confusão entre liberdade e falta de compromisso, do consumo viciador e predador.” É claro que isto não é tudo. Este também é um tempo de possibilidades fantásticas. Contudo, não se pode negar que sua descrição retrata aspectos bastante prevalentes na sociedade e reconhecíveis por qualquer um de nós.

 

Em sua percepção, o autor assinala que o estilo de vida predominante, os paradigmas éticos reinantes e o modelo hegemônico adotado nas relações humanas (entre sujeito e objeto, e não entre sujeito e sujeito) geraram, em boa parte dos pais e adultos envolvidos na educação de crianças e jovens, uma inclinação ao medo, à negligência, ao desentendimento e à procura de soluções fáceis no exercício dessa criação e educação.

 

“Um equivocado sentido de amor os leva a temer que o exercício das funções parentais em seus aspectos menos fáceis e demagógicos possa ter como consequência o desamor dos filhos. Há uma nefasta confusão entre paternidade e amizade, e esta desaba sobre os filhos na figura de um amigo ou amiga anacrônicos e disfuncionais, enquanto gera um vazio no tão necessário espaço parental.” ( Sergio Sinay) Os filhos órfãos de pais vivos, como ele os chama, estariam sendo criados pela TV, pelos fabricantes de junkfood, pelos produtores de uma tecnologia que os fascina por um lado, mas os incapacita, por outro, para muitas funções da vida cotidiana, através de artefatos que enfraquecem a vontade, eliminam a força de fantasia e o poder da imaginação criativa, acachapando certas capacidades de aprendizado e discernimento, bem como suas habilidades para a comunicação humana real.

 

As consequências desta “orfandade” são estarrecedoras. Violência infanto-juvenil, obesidade infantil epidêmica, dependência química e outras espécies de vícios e compulsões em idades cada vez mais baixas, notáveis índices de ignorância a respeito do ambiente em que vivem e como foi criado, incultura galopante, desordem nas relações filiais e parentais, etc.

 

Esta ausência repetida ou persistente dos pais, que em parte talvez se explique pelo contexto conformado pela cultura em que vivemos, não é um assunto menor, mas um sintoma da crise de sentido, de transcendência, de espiritualidade e de valores da época– manifestações que corroem como uma doença crônica e progressiva a sociedade contemporânea. Por isso mesmo, necessita de um olhar holístico, e uma leitura diagnóstica adequada, que encare o fenômeno como resultado de um paradigma cultural e social em desacordo com os sinais dos tempos, as exigências de um novo período de desenvolvimento da humanidade que se dá segundo novos princípios.

 

Para que a doença não nos leve ao óbito, será preciso enfrentá-la não somente com teorias, explicações, propostas e sugestões, mas com atos, compromissos, presença e coragem para assumir osriscos. Trata-se de uma jornada na qual queremos converter-nos de meros progenitores ( pais biológicos) em pais no mais verdadeiro sentido da função, que hoje, é em si, supranatural. Isto é, já não pode alicerçar-se em uma base natural instintiva, mas requer conhecimento, ou melhor, autoconhecimento, e um esforço interior de aprimoramento a serviço da realização das potencialidades do ser que nos é confiado como filho. Em outras palavras, um processo que requer consciência, compromisso, responsabilidade e amor. Sim, pois ser pai, ser mãe não é um hobby ou uma atividade para as horas livres. Mas um empreendimento de tempo integral com tarefas que exigem tempo, consomem energia, requerem presença.

 

Muitos de nós talvez se sintam, em alguma medida, insuficientes, inaptos, despreparados, inseguros para não dizer perdidos. Haverá uma saída? Como compreender toda esta situação? E o que podemos fazer para transformá-la em algo melhor, em sintonia com os novos tempos? 

 

Ana Paula Cury 

 

Publicado originalmente em: https://www.antroposofy.com.br/forum/a-sociedade-dos-filhos-orfaos-2/