A verdade mora nas entrelinhas.
Em nome de uma convivência pacífica com aqueles mais próximos de nós, nem sempre dizemos o que pensamos ou sentimos em sua forma integral. Aprendemos muito cedo a instalar e usar filtros morais e sociais que nos concedem a cobiçada aceitação e, quando damos um pouco mais de sorte, admiração. Mas... o que fazemos com as aparas de nossas opiniões e sentimentos? Nós as maquiamos e remodelamos a fim de que caibam nas entrelinhas da vida.
Qualquer relação emocional tem seu funcionamento baseado em contratos e acordos, quer sejam eles explícitos ou implícitos. Acontece que a maioria desses acordos e contratos são idealizados apenas dentro da nossa cabeça. Em geral, queremos a companhia, o acolhimento e a devoção do outro e estabelecemos um formato para que a convivência se encaixe perfeitamente em nossas expectativas. Por alguma misteriosa razão, esquecemos de informar ao outro sobre nossas expectativas. Ao contrário, acenamos com promessas de afeto e completude, porque cremos que se o outro acreditar que encontrará em nós seus sonhos de realização emocional, também se disporá a realizar os nossos sonhos. Estabelece-se então, um pacto perfeitamente delineado para aplacar a necessidade que temos de preencher nossos infinitos vazios.
Celebramos um pacto unilateral, velado. Mantemos em segredo nossas reais ambições e ficamos torcendo para que o outro as adivinhe. Tratamos nossa vida como se fosse uma mesa de jogo; apostamos em receitas prontas, em saídas milagrosas para nossa solidão. Trocamos nossa individualidade por companhia casual. Investimos em relacionamentos supostamente estáveis, sonhando permanecermos livres. E, assim que percebemos que ninguém é capaz de adivinhar nossos desejos, ficamos magoados, tristes, rancorosos. E, culpamos o outro pela nossa infelicidade.
O que queremos afinal? Será que alguns de nós sabe essa resposta? Pra sermos sinceros, poderíamos começar revelando nossas sombras, nossas verdadeiras intenções. Por alguns dias isso bastaria. Bastaria para atrairmos à nossa mesa, jogadores cujas cartas fossem suficientes para aturar nossos blefes. Jogo legalizado, limpo, honesto. Depois de alguns dias, pode ser que resolvêssemos trocar as cartas, mudar o jogo, trocar as regras. Mas, a essa altura, nosso parceiro de mesa já estaria mais familiarizado com a nossa loucura funcional; caberia a ele continuar no jogo ou se levantar e partir para outra. Ahhh, mas a nossa sinceridade não suportaria tanta honestidade.
Além disso, nossos objetivos são transitórios, efêmeros, fugazes. Queremos uma viagem libertadora, qual uma expedição à Antártica, mas não abrimos mão de uma equipe de apoio que nos socorra, caso mudemos de ideia e passemos a a ansiar por camas quentes, banhos mornos e segurança. Nossa natureza é narcisista, nossos planos não incluem o sucesso alheio, nossas projeções revelam nosso caráter individualista. Queremos sempre o que ainda não temos.
Até pode ser que exista uma esperança para o nosso futuro. Mas, antes de embarcarmos na próxima fantasia, quem sabe não arranjemos coragem para mostrar nossa verdadeira cara. Quem sabe não sejamos capazes de abrir mão do conforto da aceitação e revelemos na íntegra quem somos nas entrelinhas. Se alguém se arriscar a se aventurar conosco, será porque terá visto em nós algo que vale a pena, ainda que não seja perfeito ou ideal. Aquele que olhar para nossa real essência e, ainda assim, for capaz de nos desejar, será digno de nós. Digno de visitar nossa confusão, de ser bem-vindo à nossa solidão, para fazer parte, mergulhar conosco e encontrar a paz onde, no fim das contas mora a nossa verdade.