As revoluções maçônicas
A frase é de Millôr Fernandes: "DESCONFIO DE TODO IDEALISTA QUE LUCRA COM SEU IDEAL."
Millôr Fernandes (1923-2012) foi jornalista, escritor, tradutor, desenhista, dramaturgo e poeta. Mas a geração dos anos 60 e 70 o consagrou como humorista notório por suas colunas em publicações da boa (e velha) imprensa brasileira (mais boa do que velha). Isso foi nos tempos que amarrávamos cachorro com linguiça e podíamos rir de tudo sem a censura do politicamente correto. Éramos incorretos e ponto final. Millôr Fernandes era humorista no sentido amplo: percebia e manifestava, criticamente, a comicidade da vida absurda que levamos na tentativa de agradar os que nos cercam e os que nos cerceiam. Como eu disse no artigo anterior, "Ridendo Castigat Mores" (através do riso corrigem-se os costumes), sentença do neolatino Jean de Santeuil.
Guimarães Rosa desconfiou de muita coisa ("Eu quase que nada não sei. mas desconfio de muita coisa") e o carioca Millôr desconfiou do idealista que lucra com o ideal.
Lucrar não é apenas auferir ganhos materiais ou dinheiro de uma atividade ou empreendimento; lucrar é também (e principalmente) a obtenção de vantagem ou proveitos – sejam posições ou condição de superioridade de alguém com relação aos outros.
Passados mais de cinquenta anos da época de ouro do humor inteligente no Brasil, pergunto-me se ainda há chance de corrigirem-se os costumes ou simplesmente rirmos das nossas próprias limitações. Estamos a cada dia mais sérios – não por virtude, mas porque o ideal está sendo negociado nas bolsas de valores. Assim o mundo ficou carrancudo e burro; ninguém mais sabe brincar. Todos os esforços assestam para posições ou condição de superioridade almejadas por gente de pouco ou nenhum valor.
Por isso Millôr desconfiava desses idealistas. Eu nem chego a desconfiar; coloco-me antecipadamente de sobreaviso quando pressinto um discurso melífluo a escorrer como correnteza açucarada e empapuçada de lugares-comuns. Tenho lido tanta coisa açucarada na internet que meu computador ficou cheio de formigas doceiras.
O primeiro e maior desafio está em readquirirmos o bom-humor, voltarmos a achar graça nos enormes aparatos que criamos e que não servem para nada.
A virtude continua no meio: “nem tanto à terra, nem tanto ao mar”. Se o pessimismo paralisa, o otimismo a qualquer custo jogará todos no abismo.
Já dizia minha avó: “muito riso é sinal de pouco siso”.
NO CASO DA MAÇONARIA
Provoca-nos verdadeiro entusiasmo o recente surgimento de tantos maçons produzindo textos e desenvolvendo pesquisas. Há também brilhantes oradores − muitas vezes autodidatas – que se saem muito bem naquilo que se dispõem fazer. Esses bons escritores, oradores e pesquisadores todos sabemos quem são: as atenções das assembleias e nas reuniões das Lojas voltam-se para eles quando pedem a palavra, pois sempre têm qualidades a conferir numa discussão. Ao contrário dos impertinentes e da fala mansa, os bons construtores do Templo moldam palavras e conteúdos ao público a que se destinam; instruem sem pedantismo ou inflexões ríspidas de voz e gestos. Sabemos que o bom discurso não exibe conhecimentos de quem não os possui, nem ostenta elementos garimpados em obras alheias ou internet com o intuito dissimulado de humilhar os circundantes ou amedrontar iniciantes. Eu posso discernir com precisão de onde esses "novos sábios" copiam seus malabarismos e péssima literatura.
Volto a observar atentamente o momento que vivemos e aprofundo-me em reflexões sobre o que nos espera nos próximos meses deste 2020.
Levo em consideração os movimentos de Irmãos ou grupo de Irmãos que, distanciados de suas Lojas, buscam no mundo virtual alguma esperança, uma palavra amiga ou – quem sabe? – o socorro que esperam da fraternidade. Quase ouço o grito sufocado dos que se acham em situação de perigo, desamparo ou doença, gritos que se perdem no vazio de arengas enfadonhas e prolixidades sobre a "arte de bem viver", "os deveres do maçom" e discussões improdutivas sobre "sexo dos anjos" -- detalhes dispensáveis de instruções, formulários, listas, regulamentos e intermináveis beija-mãos.
Para quem desejava ver a maçonaria retomar sua vocação revolucionária, O MOMENTO CHEGOU. Não percam o trem da História, levantem a cabeça e reajam.
Apesar da luz que vem surgindo no fim do túnel, permanecemos mergulhados numa crise sanitária sem precedentes. Acossados por disputas políticas e vertiginosa queda na economia, ficamos expostos a um bombardeio do falso otimismo e de ilusórias expectativas. Na qualidade de maçons, somos uma organização de homens adultos, livres e inteligentes. Cada um deveria saber pensar por si mesmo, pois não precisamos de condutores, nem líderes, nem gurus. Nossa organização precisa de bons dirigentes – executivos e administradores de primeira linha – e isso já temos em nossas Potências e Obediências, graças ao voto livre. Mas o momento, repito, nos obriga repensar velhos conceitos de liberdade e igualdade. Grandes e pequenos, aprendizes e mestres, precisamos, mais do que nunca, exercitar FRATERNIDADE e solidariedade. Essa foi a promessa que fizemos na Iniciação; e esse foi o compromisso que a Ordem assumiu conosco naquele mesmo instante.
Água-com-açúcar não vai resolver nada; flores mimosas e polidez afetada são dispensáveis; rapapés e mesuras são salamaleques inúteis até que nos reorganizemos − primeiro como pessoas; em seguida, como cidadãos e como pátria; e finalmente, como maçonaria – é nessa ordem que caminharemos bem no pós-pandemia.
A maior punição para quem se cala é ser dominado pelos que tagarelam nos desvãos das organizações. Desconfiemos, nós também, desses idealistas que vêm vestidos com peles de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes.
Não podemos ter medo de falar, questionar ou pedir. Se preciso for, um sonoro 'NÃO' será grito de liberdade.
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