Brincar é fundamental

Gostar de brincar dispensa explicações. É como gostar de rir, cantar, dançar, respirar, caminhar na praia numa manhã de verão. Faz parte daqueles valores essenciais que já nascem com a gente, e sem os quais a vida vira um mingau insosso. Basta observar a natureza: você já viu como os animais adoram brincar? Tive um gato chamado Hassim que, apesar de ter chegado à meia-idade dos gatos, todos os dias dava lições de bem viver. Hassim dividia sua existência em três atividades fundamentais: comia muito, dormia mais ainda e brincava o resto do tempo, inclusive quando perambulava pelos telhados em tresloucada boemia à cata de namoradas bem-dispostas. Que, por sinal, nunca lhe faltaram. Gatas preferem gatos que sabem brincar.

“A diferença entre os homens e os meninos está no tamanho dos brinquedos”, dizia um adesivo colado no vidro traseiro de um jipe estacionado numa esquina de São Paulo. As manchas de barro grudadas na lataria do veículo – fruto provável de correrias por estradas lamacentas – pareciam demonstrar que seus donos levavam aquela frase ao pé da letra. Sorte a deles, por assumirem na teoria e na prática uma verdade que o mundo urbano moderno quase esqueceu: brincar é preciso.

O mundo como parque de diversões. De um jeito ou de outro, todos os gênios que a humanidade já produziu concluíram que nosso vasto mundo é um playground onde, de todas as moedas de troca, a mais importante é o bom humor. Perceberam que brincar é o melhor remédio para a maior parte dos males. Brincar na forma de circo, para os irônicos; nas quadras desportivas, para os competitivos; de longas caminhadas a pé, para os contemplativos; de contar piadas numa roda de amigos, para os sociáveis. William Shakespeare deixou claro que brincar tem a ver com teatro: “O mundo é um palco onde homens e mulheres são apenas atores; entre a entrada e a saída, cada um desempenha vários papéis”, escreveu ele na comédia “Como Gostais” (As You Like It).

No mundo cada vez mais distante da natureza em que vivemos, com freqüência esquecemos que brincar é fundamental para a felicidade e a saúde – física, psíquica e mental. Há alguns anos fui ao zoológico de São Paulo e deparei com uma cena significativa. Lá no fundo do parque, perto da área onde as pessoas fazem piquenique, havia um grande quadrado, todo cercado por um muro baixo. Dentro dele estavam pequenos animais domésticos, galinhas, pintinhos, coelhos, cabritos e cordeiros. Umas 30 crianças em idade pré-escolar também estavam dentro do recinto, a acariciar os bichos. Todas exprimiam aquele ar de encantamento que a criança tem quando encontra seu bichinho de estimação. Era lindo de ver. Mas era, também, de cortar o coração. Fui falar com as três jovens professoras que tomavam conta das crianças e elas explicaram. Os pequenos eram de bairros periféricos da Capital, moradores daqueles apartamentos tipo gaiola, onde não é permitido ter sequer um canário. Muitos nunca tinham visto uma galinha viva e, antes daquela visita ao zôo, achavam que galinhas eram apenas pedaços de coisas que se comem, ou passarinhos engraçados de anúncios e desenhos animados na televisão. Foram as próprias escolas que, ao constatar certas anomalias no desenvolvimento dessas crianças, solicitaram ao zôo a instalação do cercado onde seria possível um contato direto com os bichos. Iniciativa louvável, já que pouco é melhor que nada. Porém, que pobreza. Sobretudo quando lembro da minha infância no interior do Estado, passada num quintal cheio de mangueiras, pés de jabuticaba, cachorros, passarinhos, minhocas e... tantas, tantas galinhas.

Essa perda crescente do meio ambiente adequado para brincar e, como conseqüência, da própria capacidade de brincar, produz muitos efeitos negativos na vida das pessoas – crianças e adultos. Nos últimos tempos, cientistas de várias áreas dedicaram-se a investigar a filosofia e a psicologia do ato de brincar: o que acontece com o corpo, cérebro e comportamento de uma criatura quando ela se diverte com travessuras. Desde o início, os resultados surpreenderam: é justamente quando se brinca que as células cerebrais formam mais e mais conexões sinápticas, criando uma rede densa de ligações entre neurônios que passam sinais eletroquímicos de uma célula para outra. Ou seja, o ato de brincar estimula e exercita as diferentes funções cerebrais. Sinapses dos neurônios do cerebelo, na base do crânio, brotam em grande número, especialmente durante a prática de travessuras. O cerebelo é a parte do cérebro responsável pela coordenação motora, pelo equilíbrio e controle dos músculos. Por meio dos intensos estímulos físicos e sensoriais produzidos pelas brincadeiras, são reforçadas as ligações sinápticas cerebelares, que, em troca, aceleram o desenvolvimento motor nas crianças e, nos adultos, preservam e reforçam essas mesmas capacidades motoras. Provavelmente outras partes do cérebro também se beneficiam da estimulação da brincadeira, o que pode explicar o fato de as espécies com cérebros grandes, como a dos primatas e a dos golfinhos, serem tão brincalhonas. Nessas criaturas – sem esquecer que o homem é também um bicho de cérebro grande – o cérebro continua a amadurecer muito tempo depois do nascimento e, portanto, precisa, o mais possível, desses beliscões do mundo externo facilmente proporcionados pelas brincadeiras.

Os movimentos vigorosos das brincadeiras também ajudam no amadurecimento dos tecidos musculares. Ao enviar tipos variados de sinais nervosos para os músculos do corpo, o ato de brincar assegura a distribuição e o crescimento adequado das fibras musculares de resposta rápida, necessária para atividades aeróbicas. Os estudos de desenvolvimento muscular de camundongos, gatos e outros animais revelam que o crescimento e a diferenciação dos tratos fibrosos são maiores justamente quando esses bichos estão na fase mais brincalhona de suas vidas.

Brincar, contudo, não é fundamental apenas para o bom desenvolvimento e para a manutenção do cérebro e dos músculos. Do ponto de vista psicológico e comportamental, essa atividade tem importância ainda mais profunda e sutil. Por meio das brincadeiras, os animais superiores ensaiam muitos dos movimentos de que vão precisar ao longo da vida. Antílopes jovens, zebras e cordeiros brincam de fugir e se esconder de predadores imaginários. Eles precisam desenvolver o talento da fuga, para depois poder escapar dos leões, lobos e hienas de verdade. Os felinos, por seu lado, que são bichos carnívoros, desde cedo brincam de capturar presas: aproximam-se em silêncio uns dos outros, pulam em cima, mordem, sacodem e rosnam. Os morcegos pequenos, logo que aprendem a voar, volteiam uns sobre os outros, traçando no ar trajetórias em arco similares às manobras que os morcegos adultos realizam para capturar insetos.

O austríaco Konrad Lorenz, Prêmio Nobel especialista em etologia – ciência que estuda o comportamento dos animais –, afirmava que brincar possui também uma função adicional em espécies sociais: a de facilitar a passagem do animal como indivíduo isolado para o animal com capacidade de viver em grupo, situação onde tendências egoístas ou hostis têm de ser domadas ou até mesmo eliminadas. Os macacos jovens, por exemplo, desde os três meses de idade gastam a metade do seu tempo brincando. Outros etólogos observaram que, quanto mais o animal brin- ca, maiores são suas chances de se tor- nar um membro bem integrado no ban- do adulto. Brincando de lutar, o animal aprende quando deve se submeter ou não se submeter, assim como perder sem reclamar. Lembrete: como todos os primatas, o ser humano é também um animal social.

Os primatas, por outro lado, adoram “brincar de médico”, e parece que é através desses troca-trocas inocentes que eles desenvolvem o bom desempenho sexual que irá assegurar, no momento certo, a perpetuação da espécie.

No mundo natural, muitos adultos de espécies sociais brincam tanto quanto os seus filhotes. Os caititus, porcos-do-mato brasileiros, brincam freneticamente com seus companheiros de vara, muitas vezes por dias inteiros. Claro, como na sociedade humana, também entre os animais existem adultos chatos, rabugentos e enfadonhos que não gostam de brincar. Mas eles são minoria. Cientistas observaram muitos exemplos de brincadeiras entre pais e filhos, algo que era considerado uma característica dos seres humanos. Os filhotes dos ursos-marrons do Alasca – os enormes kojaks – brincam tanto com a mãe quanto com os irmãos. A farra favorita é se abraçarem amorosamente e saírem rolando pelas ribanceiras. As mamães gorilas brincam de esconde-esconde com seus nenens e a mamãe chimpanzé acha o máximo fazer horrendas caretas para eles.

Coisa curiosa é que, tanto nas brincadeiras dos bichos quanto nas dos humanos, é essencial o rápido desenvolvimento de uma linguagem que deixe claro a natureza lúdica do que se está propondo: “Oi, vamos brincar!” Ou, se a brincadeira for um tanto bruta: “Olha lá, eu estou só brincando.” Os movimentos de muitas brincadeiras são, de modo atenuado, os mesmos movimentos de uma agressão verdadeira. Por isso, para evitar reações indesejáveis, é preciso deixar claro que se está apenas brincando.

Através de jogos, de brincadeiras barulhentas e de fantasias de todos os tipos, as crianças praticam e desenvolvem habilidades de que vão precisar na idade adulta. Da mesma maneira que outros animais sociais, as crianças, ao brincar, aprendem a arte de viver em sociedade, de dar e receber, de transformar ou diluir impulsos agressivos em risadas divertidas. A similitude dos comportamentos brincalhões humanos e animais é tão grande que alguns psicólogos chegam a achar que nossas brincadeiras são, na verdade, reminiscências do comportamento dos nossos antepassados primatas. Deles, por exemplo, conservamos a tendência de separar os grupos por sexo e praticar brincadeiras diferentes. Meninos (e jovens macacos) geralmente gostam de vigorosos contatos físicos, de brincar de guerra e de transformar qualquer coisa em arma de combate. Meninas preferem jogos de coordenação fina, que exigem destreza e inteligência, como amarelinha ou pular corda. Elas gostam também, em todas as culturas, de brincar de papai e mamãe, de casinha, de bonecas. Se essas tendências universais dos estilos de brincar são inatas em cada sexo, ou se são produtos de condicionamentos culturais, isso ainda é tema de debates intermináveis entre os estudiosos da psicologia humana.

O que se sabe, com certeza, é que os humanos também usam a brincadeira para dominar a linguagem verbal e gestual que lhes permite uma mais plena exteriorização da própria individualidade. Curiosamente, as meninas com freqüência mostram maior fluência verbal do que os garotos durante as brincadeiras. Os meninos apresentam em geral maior eloqüência gestual.

Como todas as demais atividades humanas importantes e essenciais, as brincadeiras – principalmente aquelas que aparecem sob a forma de jogos –, também possuem um significado psicológico-espiritual. Muitas delas são ricas de um simbolismo arquetípico, como é o caso do pau-de-sebo, que está ligado aos mitos da conquista do céu (da mesma forma que trepar em árvores ou, por analogia, escalar montanhas). O futebol é uma metáfora lúdica da disputa pelo globo solar entre duas fratrias antagonistas. O papagaio que se empina representa, no Extremo Oriente, a alma do seu proprietário: é alegoria da capacidade que ele possui de, embora permanecendo com os pés bem fincados sobre a terra, ser capaz de libertar a alma, de se elevar a grandes alturas criativas através da imaginação, do sonho e da fantasia. A amarelinha representa o antigo mito do labirinto – símbolo das vicissitudes da vida –, onde o herói se perde e enfrenta uma série de provas até retornar ao mundo da luz. Muitas brincadeiras, portanto, não são apenas divertimentos lúdicos, mas sim técnicas simples para um aprendizado iniciático espiritual.

E você, faz parte do time dos brincalhões folgados ou é daqueles que confundem seriedade com chatice rabugenta? Eu já fiz minha opção: gosto de brincar e assumo o risco de, às vezes, até passar por tonto. Já tive, aos 20 anos, minha fase de andar pelo mundo como esses manequins que acham um charme desfilar nas passarelas com cara amarrada de enfado. Mas isso nada me trouxe de bom e fiz um esforço para mudar. Entendi que, se para a criança a vida lúdica é fundamental, deixar de brincar não é, no adulto, sinal de maturidade. É passaporte certo para a decrepitude.

Claro, sabemos que a melancolia existe e precisa ser respeitada. Quando ela chega, convém deixar que se instale e desempenhe o seu papel. Mas, na primeira oportunidade, melhor é seduzi-la com o regalo do bom humor. Ela quase sempre aceita o presente e entra no jogo. Pois, embora não pareça, até a melancolia gosta de brincar.

Luís Pellegrini

“A diferença entre os homens e os meninos está no tamanho dos brinquedos”, dizia um adesivo colado no vidro traseiro de um jipe. Nada mais verdadeiro. Brincar é atividade fundamental para a saúde e o bem-estar do corpo, da mente e do espírito.