Como era gostoso o meu real

A possibilidade da autoficção é tão antiga quanto a literatura e sua discussão atravessa séculos. Platão teria expulsado todos os poetas da "Cidade Ideal", devido à relativização da realidade. Fato é que o modelo autobibliográfico tornou-se uma ilusão em termos reais e híbridas as fronteiras entre a realidade e a ficção, portanto, o grande problema está no real.

De tal modo, na linha proustiana não é possível buscar o tempo perdido, porque reinventar-se é tentar um reajuste com os fatos que jamais serão perfeitamente reajustados, dado que a vida e suas experiências apresentam milhares de virtualidades, difíceis de serem ancoradas em um só lugar.

Por isso, não se encontra na vida real um ponto fixo de referência ao qual nosso eu possa definitivamente se prender.

O gênero memorialista sempre foi muito cultivado mesmo encontrando essas limitações, começando pela dificuldade do autor narrador ser ao mesmo tempo personagem principal da história. Então, mesmo com um lastro referencial, ninguém garante que o autonarrador contaria a verdade.

Não há um porto seguro capaz de selecionar somente aquilo que foi realidade. Talvez por isso, Barthes recomendou que sua autobiografia fosse considerada como dito por um personagem de romance.

Assim, seu texto deveria ser lido como uma ficção e, ao mesmo tempo, como uma autobiografia. Acontece, entanto, que a síntese entre esses dois registros poderia parecer impraticável.

Como apartar o referencial histórico do imaginário, o literal do metafórico?

Na clássica interpenetração dos limites entre o universo histórico (referencial) e o mundo ficcional, expondo o último a uma excessiva contaminação pelo primeiro, havia um protocolo tradicional em que se buscava por uma autenticidade cujo parâmetro seria a figura do autor real.

O que se agravou nestes novos tempos foi a falta desse compromisso. Hoje, tudo pode ser realidade como ficção. Nada garante que uma autobiografia não seja uma ficção, a começar pela coleta de dados, situação das datas, nomes e lugares.

A figura do autor, evocado como referencial ao texto, é voluntariosamente borrada pela indecidibilidade, dúvida e incerteza, de sorte que parte desses novos escritores invertem no engodo, ora produzindo ficção, mas desrespeitando as condições para a sua existência, ora produzindo falsa história, posto que ninguém pode estar seguro de que os fatores metatextuais como entrevistas, declarações públicas e testemunhos também não passam de uma invenção artística.

O mais curioso não é tomar por reais lugares e pessoas ficctícias e imaginadas, mas reduzir ao estatuto ficcional entidades que foram apresentadas como reais. Esse é problema!

A história tem padrões que ninguém pode alterá-la, entretanto, a estratégia da autoficção pode dilatar limites porque o seu sentido, ninguém se iluda, é mesmo o de parasitar, contaminar, conspurcar a ficção com a hibridização de seus procedimentos de atuação.

 

Durval Aires Filho
Desembargador