"Contra fatos não há argumentos": refutando a falácia com Hegel

 

 

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Dizer que "contra fatos não há argumentos" parace ser um afirmação devastadora. Quem usa este clichê geralmente pretende encerrar a discussão como seu vencedor inconteste. A idéia é que  uma referência à "realidade" seria capaz de provar a validade do que se está debatendo, pondo fim a meras e frágeis especulações teóricas.

 

Este recurso tem alguma força, contudo, apenas em um debate entre "consciências ingênuas". Para os leitores de George Wilhelm Friedrich Hegel, esta catch word não tem nenhuma validade.

 

Afirmar que "contra fatos não há argumentos" pressupõe que é possível ter acesso direto à realidade, de forma imediata (sem mediações). Este nível de consciência é tão elementar que, em sua Fenomenologia do Espírito, obra que descreve a "experiência da consciência" em sucessivos estágios, Hegel lhe coloca logo no primeiro capítulo. Pensar que é possível acessar os "fatos" sem mediações é algo extremamente primitivo e até mesmo infantil.

 

O que Hegel chama de "certeza sensível" é a forma imediata de ligação do sujeito com o objeto, sem pressupor qualquer teoria ou reflexão. O indivíduo se crê passivo diante de alguma coisa, apenas "recebendo" impressões advindas do mundo exterior. A visão de um objeto, no entanto, nunca é passiva como pode parecer. Há sempre uma ligação entre aquele que vê e aquilo que é visto.

 

Isso já havia sido observado por Kant. O filósofo de Königsberg demostrou que a construção dos objetos do conhecimento é ativa, não passiva. De maneira resumida, podemos dizer que vemos nos objetos aquilo que colocamos neles, e não somos meramente receptáculos de impressões. A realidade nos envia tantas impressões que, se fôssemos simplesmente registrar tudo que nos chega através dos sentidos, sem efetuar nenhuma transformação desta massa amorfa, deste "tsunami" de sensações, não conheceríamos absolutamente nada. Tudo seria uma imensa bagunça sem sentido.

 

Todo conhecimento é sempre a relação entre um sujeito e um objeto. Tomemos a forma como conhecemos uma árvore, por exemplo. Uma árvore não pode se chamar a si mesmo dizendo "eu sou uma árvore", e nem teve, no início dos tempos, uma placa pendurada em si pelo Criador com a palavra "Árvore". Antes, é apenas um "Eu" (Ich) concreto que pode dizer "isto é uma árvore". Com isso Hegel quer dizer que dois "Estes" (Diese) decorrem do puro Ser da árvore: 1) Este "Eu" (ou "o puro Eu") e 2) Este objeto, a árvore.

 

Quando Hegel diz que nem o Eu e nem o Objeto são "imediatos, mas mediados", ele quer diz que a certeza sensível depende de outra coisa (da árvore). E que o ser da árvore, que é inegável, precisa do Eu para sua certeza (para seu "tornar-se consciente", para seu "Gewußtwerden").

 

Pode parecer um pouco confuso, mas lembre-se que estamos saindo do senso comum para a reflexão filosófica, e isso exige algum esforço e paciência (ainda mais tratando-se de Hegel). Para entender o que acabamos de dizer, vamos esclarecer dois conceitos importantes em Hegel: o de "em si" ("An sich") e de "para outro" ("Für-ein-anderes"). 

 

A árvore é uma árvore "em si", independente de quem possa pensar ou não pensar nela. O seu "ser em si", contudo, não vai além disso. Quando ela é uma árvore "para mim", para o meu saber, segue-se um outro conceito que Hegel chama de "ser para um outro" (Für-einen-anderen-sein).

 

Estabelecida a diferença entre "ser em si" e "ser para um outro", entendemos por que vai para o túmulo a afirmação da certeza sensível de que ela é "certeza imediata". Existe algo muito importante no meio do caminho que passou despercebido por ela: quando aponto para algo e digo "isto", me refiro a algo que está no tempo e no espaço, no aqui e agora.

 

Este "Aqui e Agora", porém, tem um duplo sentido, e é mais do que meramente apontar para um relógio e para um local. O "Agora" significa: vejo a árvore às 15 horas, não necessariamente à meia-noite. O conhecimento depende de um determinado tempo. O "Aqui" significa: estou vendo a árvore neste local, não necessariamente em meu quarto.

 

Para ser preciso na expressão e muito cuidadoso com a linguagem, deveríamos dizer: este eu vê isto (a árvore) neste Agora e neste Aqui. Um exemplo de Ralf Ludwig irá esclarecer a questão.

 

A frase "Haroldo vê um jogo de futebol às 15 horas no Estádio Olímpico" abunda de contingências e particularidades que não possuem nenhuma necessidade ou certeza. O jogo pode ter sido adiado para as 18 horas por causa da chuva, pode ter acontecido em outro estádio, e o ingresso pode ter sido dado de presente para seu amigo José.

 

Por outro lado, a frase "este Eu vê isto (seja o que for) neste Agora (não importa o momento) e neste Aqui (não importa onde)" teria para Hegel uma veracidade maior. As formas "Isto", "Aqui" e "Agora" estão em contradição com as coisas particulares, e podem ser chamadas de "gerais". Este "geral", e não as coisas particulares, é que é a Verdade da certeza sensível, e não as supostas impressões particulares.

 

Vamos dar mais um exemplo, este oferecido pelo próprio Hegel, para esclarecer ainda mais a questão. Para responder à pergunta "o que é o Agora?", vamos escrever a resposta num papel. Uma verdade não perde sua validade por ser anotada. Suponhamos que seja noite, e então escrevemos: "o Agora é noite". Quando for meio-dia, vamos pegar o papel e ler o que escrevemos. Aquilo que era verdade quando escrevemos não é mais verdade no momento em que estamos lendo. O "Agora", que era noite quando escrevemos, foi mantido ao ser escrito, como um Existente (Seiendes), mas acabou se mostrando depois como um Não-existente (Nichtseiendes). O próprio Agora, contudo, se manteve como um tal que não é noite e que também não é dia. Este Agora é, portanto, não um imediato, mas um mediado, pois ele é como um permanente através da determinação, seja do dia ou da noite. Como vemos neste exemplo e também no anterior, o que permanece é apenas o "Agora" genérico, abstrato, e não sua indicação se é dia, noite, 15 horas, 18 horas, etc.

 

Na Fenomenologia do Espírito a consciência continua em sua jornada rumo ao conhecimento absoluto, mas neste ponto inicial já podemos perceber que, onde parecia não haver nada, já temos duas coisas: tempo e espaço. Estes primeiros passos da reflexão já são suficientes para nos mostrar que não existe acesso imediato (sem mediação) por parte do sujeito em direção ao objeto do conhecimento.

 

Muita gente acredita que este seria o proceder do método científico: que ele partiria dos "fatos puros" para, só depois, construir teorias. Isso é uma grande incompreensão de como opera a ciência. Sem uma teoria prévia, que forneça um recorte da realidade, não se sabe nem mesmo o que deve ser observado em um experimento. Nem mesmo o cientista parte de "fatos puros", como se tivesse acesso imediato (sem mediações) ao real.

 

Quando o sujeito diz "contra fatos não há argumentos", o que ele quer dizer é que  não pode haver argumentos contra sua própria interpretação das coisas, contra a forma como ele explica determinada contingência. Nietzsche resumiu esta questão da seguinte forma: "Contra aquele positivismo, que para diante dos fenômenos dizendo 'há apenas fatos', eu digo: não, é precisamente os fatos que não existem, apenas interpretações..." O que o dogmático chama de "fatos" é, na verdade, apenas suas interpretações. Entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido há muito mais coisas do que pensa a vã filosofia da consciência ingênua.

 

Referência

 

LUDWIG, Ralf. Hegel für Anfänger. Phänomenologie des Geistes - eine Lese-Einführung von Ralf Ludwig. München: DTV, 1997. 

 

 

Glauber Ataide

 

Fonte: https://goo.gl/DSAoCb