Dialogando com lobos

Disse recentemente um Ministro: “Vivemos tempos estranhos”.

Sem entrar nos méritos judiciários em que foi expressa essa frase lapidar, que encerra um pensamento de ordem geral, faço reflexão da mesma no âmbito social e político que vivemos. E recorro à minha juventude, época em que foram implantados no meu coração e mente, aqueles princípios do pensamento clássico e iluminista (gostem meus leitores, ou não, do classicismo ou do iluminismo). 

Possuo um livrinho raro − as edições em latim das fábulas de Esopo.

Fábulas são narrativas curtas, em prosa ou verso, com personagens animais que agem como seres humanos. As fábulas ilustram um preceito moral ao ensinar os homens, pois na elaboração das mesmas o autor atribui virtudes ou falta de virtudes aos bichos. Esopo foi um escritor da Grécia antiga, falecido por volta de 570 antes da nossa Era. Apesar de ele ter escrito em grego, as fábulas ganharam o mundo numa primeira versão latina cujo tradutor ainda permanece desconhecido. Mais tarde, por volta do ano 30, Gaius Iulius Phaedrus reorganizou todas as narrativas de Esopo numa coleção.  Reproduzo neste artigo a rara edição de 1836 das “Phaedri Fabularum” (Fábulas de Fedro) que tenho a alegria de possuir em minha biblioteca.

Uma das fábulas mais conhecidas (que constituía “pedra de toque” entre os estudantes de latim do meu tempo) é a imortal “Lupus et Agnus” (o Lobo e o Cordeiro) que passo a apresentar-lhes:

“Um Lobo estava a beber água num rio, quando avistou um Cordeiro que também bebia da mesma água, um pouco mais abaixo. E o Lobo foi ter com ele.

“Que é isso, malandro?” − disse o Lobo. “Sua intenção é turvar a água para que eu não possa beber?”

“Desculpa”, replicou o Cordeiro, “mas, veja que estou bebendo mais abaixo. Como posso sujar se a água passa primeiro por Vossa Excelência?

Mas o Lobo tinha intenções ocultas e precisava de um argumento para brigar com o Cordeiro.

“Mas nesses últimos meses você andou falando mal de mim!”, argumentou o Lobo.

“Não pode ser”, disse o Cordeiro. “Há seis meses eu ainda nem sequer tinha nascido!”

“O quê?”, urrou o Lobo. “Toda a sua família sempre odiou a minha. Se não foi você, foi seu pai que falou mal de mim!”

E, dizendo isto, o Lobo saltou para cima do Cordeiro, despedaçou-o e comeu-o.”

Moral da história aplicada ao espírito democrático

Governantes desprovidos de espírito democrático não dão ouvidos à voz da razão. Se as pessoas nada valem para elas, muito menos valerá a razão ou o bom senso. O comentarista da edição em latim acrescentou como introdução: “Facile est opprimere innocentem” (é fácil oprimir os inocentes), sendo que no latim a palavra “inocente” significa também o indivíduo destituído de segundas intenções ou malícia; refere-se ao homem simples que denota candura, que é singelo e puro. Quando o poder é dado aos trapaceiros, traiçoeiros, ordinários ou patifes, é inútil argumentar contra eles, porque o opressor achará sempre uma maneira de culpar seus desacertos às pessoas vitimadas pela canalhice e velhacaria.

José Maurício Guimarães

 

FONTE: “Phaedri Fabularum , Libri Quinque Cum Fabellis Novis” – G.Aillaud,Sucr. 96, Boulevard Montparnasse – Paris, 1836 (tradução livre, de minha autoria).