Ética e Política

Diante da vastidão do tema assumi uma tarefa muito modesta. Pensei que pudesse ser de alguma utilidade apresentar, à guisa de introdução, um “mapa” das diversas soluções opostas que historicamente têm sido dadas ao problema da relação entre ética e política.

Trata-se certamente de um mapa incompleto e imperfeito, pois está sujeito a um duplo erro: quanto à classificação dos tipos de solução e quanto ao enquadramento das diversas soluções nesse ou naquele tipo. O primeiro erro é de natureza conceitual, o segundo de interpretação histórica. Trata-se portanto de um mapa a ser revisto por observações ulteriores. Mas por ora creio estar em condições de oferecer pelo menos uma primeira orientação a quem, antes de se aventurar num terreno pouco conhecido, queira saber de todos os caminhos que o percorrem.

Divido as teorias que trataram do problema da relação entre ética e política em monistas e dualistas. Por sua vez divido as monistas em rígidas e flexíveis, as dualistas em dualismo aparente e dualismo real. Trata-se de quatro grandes subdivisões onde se encaixam, ou ao menos procuro encaixar, todas as doutrinas que conheço. De cada uma darei um exemplo.

Todos os exemplos são tirados da filosofia política moderna a partir de Maquiavel. É verdade que a grande filosofia política nasce na Grécia, mas a discussão do problema das relações entre ética e política fica particularmente aguda com a formação do Estado moderno, e recebe pela primeira vez um nome que não a abandona mais, “razão de Estado”.

Mas por qual motivo? Sugiro uma razão, ainda que com muita cautela. O dualismo entre ética e política é um dos aspectos do grande contraste entre Igreja e Estado, um dualismo que só podia nascer com a contraposição entre uma instituição cuja missão é a de ensinar, pregar, indicar leis universais de conduta reveladas por Deus, e uma instituição terrena cuja tarefa é assegurar a ordem temporal nas relações dos homens entre si. Na realidade o contraste entre ética e política na época moderna é, desde o princípio, o da moral cristã com a praxis daqueles que desenvolvem ação política. Num estado pré-cristão, em que não existia uma moral institucionalizada, o contraste é menos evidente. O que não quer dizer que não exista no pensamento grego: basta pensar na oposição a que se refere Antígona, entre as leis não escritas e as do tirano. No mundo grego não há uma moral, mas várias morais. Cada escola filosófica tem a sua moral. Onde existem diversas morais com as quais a ação política possa se confrontar, o problema da relação entre moral e política não tem sentido preciso algum. O que suscitou o interesse do pensamento grego não foi tanto o problema da relação entre ética e política, mas o problema da relação entre bom governo e mau governo, de onde nasce a distinção entre rei e tirano. Mas é uma distinção no interior do sistema político, que não diz respeito à relação entre um sistema normativo, como a política, e um outro sistema normativo, como a moral. O contrário disso ocorre no mundo cristão e pós-cristão.

A segunda razão da minha escolha é que, sobretudo com a formação dos grandes Estados territoriais, a política se revela sempre mais como lugar no qual se explicita a vontade de poder em um teatro bem mais vasto, e portanto bem mais visível, que aquele das vinganças privadas ou dos conflitos da sociedade feudal; sobretudo quando essa vontade de poder põe-se a serviço de uma confissão religiosa. O debate sobre a razão de Estado explode no período das guerras de religião. O contraste entre moral e política revela-se em toda sua dramaticidade quando ações moralmente condenáveis (lembre-se, para dar um grande exemplo, da noite de São Bartolomeu, louvada entre outros por um dos maquiavélicos, Gabriel Naudé) são cumpridas em nome da própria fonte, originária, única, exclusiva, da ordem moral do mundo, que é Deus.

Pode-se acrescentar ainda uma terceira razão: somente no século XVI esse contraste foi assumido também como problema prático para o qual se procura dar alguma explicação. Ainda uma vez o texto canônico é O Príncipe de Maquiavel, particularmente o capítulo XVIII, que começa com estas palavras fatais: “Quanto seja louvável num príncipe manter a fé, e viver com integridade e não com astúcia todos entendem: não é sem mais que se vê pela experiência, nos nossos tempos, aqueles príncipes que da fé tiveram pouca conta terem feito grandes coisas.” A chave de tudo é a expressão “grandes coisas”. Quando se começa a tratar o problema da ação humana não do ponto de vista dos princípios mas do ponto de vista das “grandes coisas”, isto é, do resultado, então o problema moral muda completamente de aspecto e se desloca radicalmente. O longo debate sobre a razão de Estado é um comentário, que dura séculos, desta afirmação peremptória e inconfundivelmente verídica: na ação política não contam os princípios, mas as grandes coisas.

Voltando à nossa tipologia, depois desta premissa, faço ainda uma segunda. Das doutrinas sobre ética e política que enumerarei algumas têm valor basicamente prescritivo, já que não pretendem dar uma explicação para o contraste e sim tendem a dar a ele uma solução prática. Outras têm um valor basicamente analítico, já que não buscam sugerir como deveria ser a relação entre ética e política, mas a indicar a razão pela qual existe o contraste. Ainda que a divisão entre os dois aspectos nunca seja muito nítida, pode-se dizer genericamente que as doutrinas do monismo rígido e do dualismo aparente tem mais um valor prescritivo que analítico. Pelo contrário, as doutrinas do monismo flexível e do dualismo verdadeiro têm um valor mais analítico que prescritivo. Acredito que a desconsideração das diferentes funções das teorias tenham produzido grandes confusões. Por exemplo, não tem sentido refutar uma doutrina prescritiva com observações de tipo realístico, assim como não tem sentido contrapor-se a uma teoria analítica propondo uma melhor ou a melhor solução para o contraste.

Começo, então, com o monismo rígido. Incluo no monismo rígido todas as teorias que afirmam não haver contraste entre dois sistemas normativos, o moral e o político, porque só há um sistema. Naturalmente, existem duas versões possíveis dessa variante: a redução da política à moral e a redução da moral à política. Exemplo da primeira é a ideia, ou melhor o ideal, típico do século XVI, do príncipe cristão, tão bem representado por Erasmo, cujo livro A educação do príncipe cristão é de 1515, portanto mais ou menos contemporâneo de O Príncipe de Maquiavel, do qual é a mais radical antítese. O príncipe cristão de Erasmo é o outro lado da face demoníaca do poder. Algumas citações. Erasmo se dirige ao príncipe dizendo: “Se, queres mostrar-te ótimo príncipe, estai bem atento a não te deixar superar por outro alguém naqueles bens que são verdadeiramente teus próprios, a magnificência,, a temperança e a honestidade.” Estas virtudes unicamente morais não tem nada a ver com a virtude no sentido maquiavélico da palavra. Ou então: “Se desejais competir com outros príncipes, não julgue havê-los vencido por lhes haver tirado parte do domínio. Os vencerá verdadeiramente se fores menos corrupto que eles, menos avaro, arrogante, iracundo.” E ainda, “Qual é a minha cruz” pergunta o príncipe; e responde: “é seguir o que é honesto, não fazer mal a ninguém, não espoliar ninguém, não deixar-se corromper por donativos.” A satisfação do príncipe consiste em ser justo, não em fazer “grandes coisas.

Como exemplo da segunda versão do monismo, da redução da moral à política, escolhi Hobbes. Claro que também aqui com toda a cautela, sobretudo depois que alguns críticos recentes chamaram a atenção para o que foi chamado de clareza plena de confusão do autor do Leviatã e deixam o leitor, vencido e fascinado pela força lógica da argumentação hobbesiana, desconfiado no que se refere a interpretações demasiadamente unilaterais. Ainda assim parece-me que, por certos aspectos, seja difícil encontrar um autor no qual o monismo normativo seja mais rigoroso, e o sistema normativo, diversamente de todos os outros,, seja o sistema político ou o sistema de normas que derivam da vontade do soberano legitimado pelo contrato social. Podem-se aduzir muitos argumentos:; para Hobbes, os súditos não têm o direito de julgar o que é justo e injusto porque isso cabe somente ao soberano, e sustentar que o súdito tenha o direito de julgar o que é justo e injusto é considerado uma teoria sediciosa. Mas o argumento fundamental é que Hobbes é um dos poucos autores, talvez o único, que não distingue o príncipe do tirano: e não há esta distinção porque não existe a possibilidade de distinguir o bom governo do mau governo. Enfim, como me referi ao contraste entre Igreja e Estado como determinante para entender o problema da razão de Estado nos séculos XVI e XVII, recordo que Hobbes reduz a Igreja ao Estado: as leis da Igreja são leis somente enquanto aceitas, desejadas e reforçadas pelo Estado Hobbes, negando a distinção entre Igreja e Estado, reduzindo a Igreja ao Estado, elimina a própria razão do contraste.

Por monismo flexível, entendo a teoria que também reconhece um só sistema normativo, mas admite como legítimas, justificáveis com argumentos pertencentes à esfera do racional, exceções em determinadas circunstâncias de tempo, de lugar, de pessoa ou de natureza da ação. Basta ter uma certa familiaridade com o Direito (ou tratamento legalista da ética, que dá na mesma), para saber a importância da instituição que os juristas denominam lex specialis. Pois bem, quando há um contraste entre a lex specialis e lex generalis, prevalece a lex specialis. Ou então a análoga instituição da dispensa, que é característica do direito canônico (a dispensa é definida como abrandamento da lei para um caso especial, relaxio legis in casu speciali). Ou ainda o princípio da equidade, a justiça do caso concreto, invocada para temperar o rigor da lei abstrata. A importância da exceção é capital, já que nenhuma lei é tão forte que valha em todos os casos. Não há lei bastante forte para dispensar exceções em determinados casos específicos.

A explicação e a justificação do contraste entre moral e política com base na relação entre regra e exceção, e portanto do princípio da excepcional idade por justa causa, estão entre as mais comuns em meio aos teóricos da razão de Estado. Rodolfo De Mattei, que foi o mais assíduo e aplicado estudioso de tratados relativos à razão de Estado, italiana sobretudo, demarca a teoria da excepcionalidade ou, como se dizia, da “contravenção lícita”, de Scipione Ammirato, cujos discursos sobre Cornelio Tacito são de 1594. Mas pode-se citar ainda muitos outros textos de autores menores. Destes, talvez o mais interessante seja Canonieri, que diz: “Razão de Estado é o necessário excesso da jurisprudência (giure comune) para fins de utilidade pública.” Como se pode entrever pelo adjetivo “necessário”, o primeiro grande argumento em favor da excepcionalidade é o estado de necessidade, estado aquele em que não se pode deixar de fazer aquilo que se faz. As leis se referem somente às ações possíveis, às ações que podem ou não ser realizadas. Mas quando uma ação ou é necessária ou é impossível, as leis são absolutamente impotentes. A necessidade não tem lei: é a própria lei. O estado de necessidade, como causa de justificação, vale tanto para o privado, no direito penal por exemplo, quanto no direito público, na forma do estado de emergência.

A própria máxima “o fim justifica os meios” pode ser incluída na noção de exceção por necessidade. De fato, uma vez deslocado do fim para o meio, o juízo sobre a bondade ou maldade da ação torna-se puramente técnico; um juízo em que a ação é considerada exclusivamente como o “meio” para alcançar o fim. Em outras palavras, a consideração da relação meio – fim transforma o imperativo categórico em imperativo hipotético do tipo “se queres, deves”, no qual a relação meio-fim é pura e simples derivação da relação causa-efeito (ou de uma relação necessária, como é aquela de causa-efeito).

Além do estado de necessidade, para justificar a exceção são adotados argumentos referentes tanto à qualidade específica de uma determinada pessoa quanto à natureza específica de uma dada ação. Aqui emerge o tema das éticas especiais ou profissionais, isto é, dos sistemas normativos que se referem a pessoas específicas na especificidade de sua ação: comerciantes, médicos, sacerdotes, e também, (por que não?) os políticos. Levando em conta essa relação entre o geral e o particular, poder-se-ia incluir o contraste entre ética e política na distinção mais conhecida entre moral geral e morais profissionais, considerando a política como atividade específica que tem suas regras práticas ou técnicas, como qualquer outra atividade. É bem sabido, de resto, que no início das reflexões sobre a política, entendida como arte ou ciência do governo, as sugestões tiradas da analogia entre a arte política e outras artes são muito frequentes: o político é o mestre da ginástica, o piloto, o tecelão, e assim por diante.

Mas, com essa abertura para as éticas profissionais, o monismo tende a converter-se em dualismo, se bem que uma forma atenuada de dualismo, no qual a relação entre os dois sistemas normativos se resolve numa relação entre um sistema geral e um sistema especial.

Como se percebe, estou procurando aplicar às relações entre sistemas normativos alguns critérios que os juristas aplicam à análise das relações entre normas no interior de um sistema. Além do critério lex specialis derogat generali, os juristas conhecem um outro critério para resolver antinomias normativas: lex superior derogat inferiori. Trata-se do assim chamado critério hierárquico. Pois bem, aplicando este critério à análise da relação entre dois sistemas normativos abre-se o caminho para as doutrinas que, diferentemente das monistas, sustentam que ética e política são distintas mas ao mesmo tempo relacionam-se entre si, numa relação na qual um dos dois sistemas é considerado superior e o outro inferior. Se há uma relação hierárquica, no caso de conflito entre os dois sistemas prevalece o superior.

Também aqui, como no caso do monismo rígido, são dois os casos: a moral é superior à política ou então a política é superior a moral. O exemplo que ocorre da primeira solução é a filosofia de Croce. No sistema de Croce, economia e ética são distintas (a política é parte do mundo da economia), mas não são colocadas no mesmo plano: uma é superior à outra, no sentido que uma sobrepuja a outra. Entenda-se que não se está dizendo que “sobrepujar” implique ser superior no sentido axiológico, e sim que quando Croce se põe o problema maquiavélico da relação entre ética e política jamais deixa de admitir que o momento logicamente sucessivo é também axiologicamente superior, mesmo que nunca seja muito claro quais sejam as consequências desta superioridade: uma ação política imoral é condenável? O que significa isso de que é lícita na sua esfera particular, se depois se admite uma esfera superior? São questões muito difíceis de responder e, repito, não é fácil encontrar uma resposta clara em Croce, que retornou a este tema infinitas vezes. Aqui escolho uma passagem que encontra-se num volume intitulado, não por acaso, Ética e Política.

Croce diz: a esfera da política é a da utilidade, das transações, dos acordos, das lutas, e nessa guerra contínua, indivíduos, povos e Estados estão em guarda contra indivíduos, povos e Estados, buscando manter e promover a própria existência e respeitando outras só na medida em que beneficiem a sua própria. Mas – continua – mesmo nunca perdendo de vista esta realidade da política convém resguardar-se de um erro comum, que é o de separar as formas da vida. Que se recusem as tolas moralizações da política, que se celebre Nicolò Machiavelli como gênio e como o verdadeiro fundador da ciência política, mas que nunca se esqueça que a própria política não existiria se não existisse de todo o outro homem, se não existisse o homem moral. E, – conclui – tenha-se por falso a priori qualquer dissensão que se crê divisar entre a política e a moral, já que a vida política ou prepara a vida moral ou é ao mesmo tempo instrumento e forma de vida moral.

O outro lado da moeda, isto é, a política vista como superior à moral, sendo esta entendida como moral individual, pode ser representada por Hegel. Em Croce a moral vem depois da política e a “supera”, enquanto que em Hegel o momento da moralidade subjetiva precede o momento da moralidade desenvolvida, que se realiza na esfera pública e culmina no Estado. A moralidade subjetiva prepara a política mas é forçada a calar-se junto com a palavrório dos predicantes, quando entram em campo a cavalaria com suas armas cintilantes. A bem conhecida passagem em que Hegel enfrenta o tema da razão de Estado está no parágrafo 337 da Filosofia do Direito, onde afirma: “Já muito se discutiu o contraste entre moral e política e a pretensão a conformar a segunda à primeira. Nesse ponto importa somente notar que justificação do bem do Estado é completamente diferente da do bem do indivíduo e que a substância ética, o Estado, está imediatamente presente, com o seu direito, em uma existência não abstraía mas concreta, e que só essa existência concreta, e não algum dos tantos pensamentos gerais tomados por imperativos morais, pode ser o princípio do seu agir e da sua conduta. A suposição de que, nesse suposto contraste, a política deve sempre estar em erro repousa ainda mais na superficialidade das representações da moralidade, da natureza do Estado e de suas relações com o ponto de vista moral.”

Encerro com o dualismo real. A distinção entre moral e política, nesse caso, corresponde à distinção entre duas éticas, que são irredutivelmente diferentes, já que propõem dois critérios diferentes como juízo positivo e negativo das ações. As ações podem ser julgadas segundo os princípios, isto é, segundo algo que antecede a ação, ou segundo as consequências, isto é, segundo alguma coisa que está depois da ação. Essa distinção, mesmo que um pouco simplificada, corresponde à famosa distinção weberiana entre ética da convicção e ética da responsabilidade. É fato que, aplicando um ou outro desses critérios, podemos chegar a juízos completamente diferentes ou mesmo opostos sobre qualquer ação. Tomemos um tema de grande valor, a pena de morte. Se a julgo baseado no princípio “não matarás”, não posso senão condená-la. Mas se a julgo com base nas consequências, e se por exemplo acredito que a pena de morte seja mais intimidadora que a prisão, não posso aprovar sua abolição.

Uma ação moralmente boa é aquela realizada de acordo com certos princípios universais, ou assim supostos por quem os cumpre. Uma ação politicamente boa é uma ação que teve sucesso, que atingiu a finalidade que os agentes se propunham. Quem age segundo princípios não se preocupa com o resultado de suas ações: faz aquilo que deve e que disso advenha o que for possível. Quem se preocupa exclusivamente com o resultado não se move tanto pelo sutil respeito à conformidade aos princípios mas faz aquilo que é necessário para que ocorra o que deseja. O juiz que pergunta ao terrorista “arrependido” se havia cogitado do problema do “não matarás” representa a ética dos princípios. O terrorista que responde que o grupo só havia cogitado do problema de ser ou não bem sucedido representa a ética do resultado. Se se arrepende não é porque sinta remorso por haver violado a lei moral mas por considerar que afinal a ação política praticada havia falhado em relação ao escopo proposto. Nesse sentido não pode dizer-se propriamente “arrependido”, mas antes alguém que se convenceu de ter errado. Não reconheceu tanto a culpa quanto o erro.

Pode-se tanto não atingir o resultado como alcançar um resultado diferente daquele que estava proposto. O assassino do arquiduque Ferdinando durante o interrogatório do processo disse: “Não previa que após o atentado teria vindo a guerra. Acreditava que o atentado teria agido sobre a juventude, incitando-a às ideias nacionalistas.” E um dos cúmplices, que errou o tiro, disse: “Este atentado teve consequências que não podiam ser previstas. Se tivesse podido prever o que teria sucedido, teria eu mesmo sentado naquela bomba para fazer-me em pedaços.”

Concluo. Afirmei que das quatro concepções da relação entre ética e política, duas têm um valor mais prescritivo e as outras um valor analítico. Acrescento por fim que a concepção do monismo flexível não somente explica porque há o dissídio como também procura justificá-lo. A única doutrina verdadeiramente analítica, que não pretende prescrever nem justificar nada, limitando-se a constatar o contraste procurando dar-lhe uma explicação – digo explicação e não justificação – é a última, o dualismo real. Posto nesses termos, como contraste entre dois sistemas de juízo não coincidentes sobre o bem e o mal, o problema é realmente insolúvel. Haveria uma solução se se pudesse demonstrar que sempre, digo sempre, o melhor resultado é aquele que se obtém respeitando princípios. Uma demonstração desse gênero é possível somente no âmbito de uma ética extra-mundana, para o qual o único fim bom que conta é a salvação da própria alma, obtido pelo respeito às leis morais sustentadas por quem está em posição de dar um juízo definitivo, de premiar o justo e de punir o injusto. Neste mundo, porém, a glória do justo e a condenação do injusto não estão de modo algum asseguradas. O justo deve fazer-se injusto para fazer justiça, o pacífico deve fazer-se violento para estabelecer a paz, o amante da verdade deve mentir para não se deixar enganar pela mentira de outros, o honesto deve violar os pactos impostos pela força, o bom deve manchar-se das mesmas culpas do malvado para fazer triunfar o bem.

A história da vida moral e a história da vida dos Estados são duas histórias paralelas que até agora raramente se encontraram. Olhando ao redor tenho a impressão de que não estejam destinadas a encontrar-se num futuro próximo. O herói da vida moral é o santo que vai ao encontro do martírio para salvar o princípio do bem, o herói político é o homem da história universal de Hegel, o líder carismático ou somente o governante responsável, que salva ou crê salvar o próprio povo, mesmo que ao preço de inaudita crueldade.

Permitam-me fechar uma exposição deliberadamente fria, compassada e impassível, com essa lembrança da dramática realidade de nossos dias. Não só a história dos justos e a história dos poderosos são paralelas que não se encontram, mas até agora a história que se celebrou e cujos triunfos continuam se celebrando não é a primeira mas a segunda.

Norberto Bobbio
Tradução de Marcos Tadeu del Roio

Fonte: Scielo e publicado no  https://opontodentrocirculo.com/