Fronteiras da Alma.

Num país onde grande parte do território ainda se mantém inabitado, é fácil entender o fenômeno da colonização. Sou neta de portugueses, bisneta de espanhóis e italianos, tenho descendência negra, talvez indígena, vai saber. Como brasileira nata, sou uma mistura de muitos povos, muitas culturas e muitos sonhos. Vejo os refugiados da Síria e algo em mim se manifesta fisicamente. Uma dor, uma vontade de dar abrigo, de dar consolo...Por quê? Porque eu sou o resultado da fuga de um povo. Do desejo de um futuro melhor. Se os portugueses e os italianos não tivessem se aventurado no Atlântico, eu não existiria e não estaria aqui, redigindo essas palavras.

O mundo têm fronteiras porque alguém decidiu construí-las. O mundo, como planeta, não têm fronteiras. Não por acaso é redondo. Um círculo não tem fronteiras, ou tem? Será que fugi das aulas de geometria?

Como fruto de um processo migratório, não poderia passar imune ao momento atual. Alguém duvida o quanto é doloroso deixar para trás tudo que foi construído? Deixar nossas raízes e ir em busca de um consolo junto ao desconhecido? Não, ninguém faz isso de livre e espontânea vontade. Ainda mais num país onde questões religiosas e culturais são tão arraigadas. Na Síria, a questão não se limita a mudar, mas a transformar-se. É estar aberto ao impreciso, ao incerto e incógnito. Abraçar os seus e partir...Segurando, ancorando, equilibrando a estima, o orgulho e a dignidade, mesmo quando alguém lhe fizer tropeçar.

Ninguém segura o desejo de ser feliz, pois cada ser humano carrega consigo um poder de transpor quaisquer limites, sustentado por uma alma que por sua grandeza, transcende quaisquer fronteiras. Hoje são os Sírios, ontem foram os portugueses, os judeus, os italianos... O mundo é feito de pessoas adaptáveis, exploradoras, que nesse processo de busca construíram nações inteiras, afinal toda chegada, pressupõe uma partida.

Por que, então, o estopim de uma situação tão recorrente e antiga teria que ser uma criança na beira da praia, bem vestida e tão mal aventurada?

Pergunta retórica para algo tão evidente. Do outro lado do mundo assistimos algo muito similar à nossa realidade, aqui no Brasil. Pessoas que por um motivo relevante, decidem abrir mão de suas casas, famílias e origens para fugirem. Pais dispostos à arrumar seus filhos para uma viagem com destino indefinido, retirantes no Brasil, refugiados no resto do mundo. Têm em comum a busca pelo direito de viver, e não apenas sobreviver.

Este assunto diz respeito à pessoas que buscam legitimamente, algo que lhes foi retirado ou nunca dado. Ou talvez, este assunto tenha como tema principal a falta de altruísmo do mundo, que talvez – e morbidamente - tenha se revitalizado com uma foto de Alyan Kurdi na primeira página dos jornais no mundo.


publicado em sociedade por Mirian Canavarro.