Jesus - de revolucionário a progressista

 

O cristianismo, em seus primórdios, encontrou principalmente entre as camadas mais pobres da população um fértil terreno para sua expansão. Não simplesmente como ideologia alienante imposta pelas classes dominantes, pois era uma religião proibida, ilegal e perseguida. Era um movimento autenticamente popular e que ganhava espaço justamente por responder aos anseios populares por justiça e igualdade social. A estrutura comunista primitiva da igreja deixa isso muito claro - esse era um dos principais atrativos do cristianismo para os pobres.


Pela proximidade tanto temporal quanto doutrinária entre a atividade de Jesus e o surgimento das primeiras comunidades cristãs tem-se uma boa indicação de que as posições políticas de Jesus realmente se aproximavam daquilo que praticavam essas comunidades no seu dia-a-dia. Sua mensagem não seria acolhida entre os pobres apenas por causa do seu conteúdo "intelectual", como defendem os idealistas.

Mas além dessas primeiras evidências, há um outro caminho pelo qual podemos chegar a conclusão semelhante. E esse caminho é a investigação da progressiva tomada de consciência de Jesus tanto sobre ele próprio como de sua atividade.

Pois, se de acordo com a tradição cristã Jesus é Deus e homem ao mesmo tempo, em que momento ele adquiriu essa consciência?

Porque é muito estranho imaginar, como afirmam alguns evangelhos apócrifos, que desde pequeno ele já tenha se considerado "filho de Deus" e até saísse matando outras crianças por aí com poderes que só ele tinha (vide o evangelho apócrifo de Tomé, no qual ele mata algumas pessoas apenas ao proferir maldições sobre elas).

É bem mais razoável que Jesus tenha adquirido a consciência de sua identidade de forma progressiva. E essa palavrinha - "progressiva" - é muito importante para auxiliar na compreensão de sua atividade.

Imaginemos o momento em que ele compreendeu que o messias era ninguém menos que ele próprio. O que ele entendia por "messias"? Provavelmente a mesma coisa que todo mundo: que o messias era uma figura política, um rei temporal que libertaria Israel do jugo estrangeiro imperialista romano.

A Palestina na época de Jesus fervilhava de partidos e movimentos de libertação nacional. Tanto que até um de seus apóstolos escolhidos era um revolucionário zelote (Simão, o Zelote). Os zelotes eram um grupo político nacionalista que praticava a luta armada contra Roma.

As supostas "profecias" no AT de que o messias seria um profeta pacífico que morreria para dar libertação apenas "espiritual" são no mínimo "forçadas". Não convencem judeu nenhum hoje. Os primeiros intérpretes cristãos se utilizaram de uma forma de interpretação alegórica e fora de contexto bem peculiar, estranha até.

Até o filósofo William Lane Craig parece reconhecer isso implicitamente quando afirma que deve ter acontecido um fenômeno muito impactante (a ressurreição, no caso) que levou os discípulos a tentarem conciliar a pessoa de Jesus com o messias do AT, procurando desesperadamente "provas" de que as profecias se cumpriam nele. Afinal, se esse cara ressuscitou, ele só pode ser o messias.

Jesus não defendeu até o final de sua vida posições políticas tão avançadas quanto à dos zelotes. Mas se considerarmos que sua tomada de consciência foi progressiva isso deixa muito claro algumas passagens que a interpretação tradicional não consegue explicar satisfatoriamente, e que num determinado momento ele chegou a se alinhar com tais grupos de libertação nacional .

Em diversas passagens Jesus fala sobre espadas, guerras, etc. Interpretações alegóricas simplesmente "rebolam" para explicar por que é que ele disse "quem não tem espada venda a sua capa e compre uma", por exemplo. (Interpretações alegóricas são perigosas, e com elas se prova qualquer coisa. A imaginação é o seu único limite).

E o que alguns autores afirmam é que essas aparentes "contradições" entre um Jesus que algumas vezes fala sobre "guerras" e "espadas" por um lado e "amar o inimigo" e "dar a César o que é de César" por outro são explicadas por essatomada de consciência progressiva, tanto de sua identidade quanto de sua atividade.

Essa perspectiva é explorada de forma fictícia no filme "A última tentação de Cristo", que, não obstante ser apenas um romance, nos leva a pensar de forma mais profunda sobre o Jesus humano, já que quase sempre ouvimos falar só no seu lado divino.

Mas um capítulo de uma outra obra, esta sim histórica e baseada em trabalhos de pesquisa, vai nos mostrar um pouco deste lado humano de Jesus. É a "História do socialismo e das lutas sociais", de Max Beer. Após fazer uma breve exposição do contexto em que atuou e viveu Jesus e de mostrar como ele abandonou posteriormente o projeto popular de libertação nacional, o autor faz este balanço:

"Jesus Cristo foi um revolucionário acima de seu tempo. Ultrapassa o judaísmo. Atravessa as fronteiras nacionais e reduz a pó o edifício religioso tradicional que seu povo havia erigido à custa de tantos sacrifícios e de tantas angústias. Os judeus, certamente, poderiam ter perdoado Jesus, se ele tivesse colocado a sua popularidade a serviço do movimento de emancipação nacional contra Roma. Os judeus não obtiveram o perdão para Barrabás, que fora condenado a morrer na cruz em virtude da sua atividade revolucionária contra o domínio de Roma? Mas Jesus e os seus partidários estavam, nesse ponto, tão distantes das massas judaicas, que o evangelista Marcos chegou a condenar a atividade patriótica de Barrabás como um 'crime', um incitamento à 'matança'. Tanto do ponto de vista religioso quanto do político-social, Jesus se situava tão distante da civilização judaica como da romana. Eis porque foi condenado a morrer crucificado."

A atividade de Jesus, de acordo com Beer, foi continuar a obra dos profetas. Tinha um sentido claramente antinacional e antireligioso, sendo sua doutrina anarcocomunista e baseada na moral estóica.

Glauber Ataide.

Estudo Filosofia na UFMG, e acho que o papel da Filosofia não é apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo. Meu fascínio pelas profundezas do inconsciente, essa parte de nós "tão escura quanto o próprio inferno", tem me impulsionado após Freud pelas sendas da Psicanálise. E me chamo Glauber porque nasci no mês seguinte à morte do grande cineasta Glauber Rocha, que eu adoro.

Fonte: https://glauberataide.blogspot.com.br/