Maçonaria, linguagem e religião

Crença e religião

Como amiúde se afirma, a Maçonaria não é uma religião, embora às vezes alguns dos seus membros ajam como se fosse. Nem é uma crença, embora aqui também possamos encontrar irmãos que, em determinadas ocasiões, se comportam como verdadeiros sectários, defendendo posições que beiram o fundamentalismo religioso.

Crença e religião são conceitos diferentes. Crença é um pressuposto filosófico ou um artigo de fé que as pessoas adoptam como verdadeiro e por ele se guiam nos seus pensamentos. Religião é uma forma de exercitar a crença. É uma estratégia, na qual se desenvolve um conjunto de actos litúrgicos que se destinam a prover uma linguagem específica segundo a qual se supõe, a divindade cultuada deve entender e responder.

A crença não tem uma linguagem nem uma forma específica de se dirigir á divindade que a inspira. Ela provê uma ligação directa entre a entidade cultuada e o seu adepto, feita á nível de espírito, e quanto maior o sentimento envolvido na ligação, mais fortalecida sairá a crença dessa relação. Já a religião, cuja etimologia vem do verbo latino religare, significa que esta é uma forma pela qual o grupo praticante está tentando comunicar-se com a divindade da sua eleição. Neste sentido ele desenvolve uma série de actos litúrgicos, que integra elementos de linguagem auditiva, como as preces, as cantatas, os mantras, as batidas dos tambores e atabaques da religiões afros, como também elementos de linguagem visual, como os ícones, os ídolos, os estandartes, as pinturas. Igualmente desenvolve elementos de linguagem cinestésica, que são, fundamentalmente os rituais.

Sistema de linguagem

Assim, podemos dizer que religião é um sistema de linguagem, e por ser assim, aquele que o utiliza também vê, escuta e sente a divindade de formas diferentes. Isto ocorre porque cada sistema linguístico tem as suas próprias particularidades e os seus usuários representam os seus conteúdos mentais de acordo com as identidades que desenvolvem nas suas histórias de vida. Embora nas raízes das crenças que informam a religião possa estar, e geralmente está, os mesmos arquétipos, será a história de vida do grupo praticante da religião que inspirará a linguagem na qual ela será representada. Santos com belas auréolas iluminadas, anjos com fluidas asas, profetas barbudos com semblantes austeros, ou espíritos da floresta, duendes, criaturas híbridas, a meio caminho entre o humano e o animal, ou mesmo forças da natureza em forma de monstros, belas figuras de mulheres, como as fadas, ou feias como as bruxas, serão aliciadas pelos sentidos visuais do praticante para representar os elementos subtis da sua crença.

Como se vestirá o praticante para invocar a divindade? Usará roupas negras como os maçons, acompanhadas de aparatos, alfaias e instrumentos da profissão de construtor, para honrar aquele a quem eles consideram o Grande Arquitecto do Universo? Ou usarão batinas, estolas, mitras, saltérios, turíbulos, para auxiliar a visualização do seu conteúdo divino, como fazem os ministros do culto católico? Ou então meter-se-ão em peles de animais, pintarão o corpo com muitas e variadas cores, e usarão instrumentos que simbolizam as forças que querem invocar e honrar?

E como ele fará para conversar com a divindade? Elaborará canções, preces, mantras, rezará ladainhas, salmos? Usará chocalhos, sinos, tambores, instrumentos musicais que imitam sons naturais? E como será a liturgia dos sentidos? Oferecerá alimentos à divindade para a delicia do paladar dela? Praticará a liturgia do “passe”, do compartilhar do ágape, do abraço fraterno, da “corrente da união”, da queima do incenso, para eliciar uma mais activa participação dos sentidos prioceptivos na execução do culto?

Todas estas práticas litúrgicas e rituais são âncoras que servem para eliciar uma disposição sensitiva que facilita o praticante do culto a se comunicar com a sua divindade. Isto explica porque, dentro de uma mesma crença, encontrarmos formas tão diferentes de cultuar a divindade. O cristianismo, por exemplo, é uma crença. O catolicismo, com as suas variações romana, grega, ortodoxa etc. é uma religião com as suas formas de culto, ou seja, linguagens próprias desenvolvidas conforme as visões que cada grupo tem da divindade. As confissões evangélicas também desenvolveram os seus próprios cultos como forma de linguagem. Assim, religião e culto podem ser considerados sinónimos. E ambos podem ser definidos como sendo um sistema de linguagem que a sensibilidade humana desenvolveu para se comunicar com a divindade da sua crença.

A linguagem da Maçonaria

A Maçonaria, embora tenha desenvolvido um sistema de linguagem, em forma de culto, para instrumentalizar a sua prática, não pode ser considerada uma crença nem uma religião. Não é uma crença porque não defende nem propaga um pressuposto filosófico ou um artigo de fé, destinados a guiar pessoas nas suas vidas espirituais; é não é uma religião porque, na sua estratégia de culto, não pretende buscar um relacionamento entre os seus praticantes e uma divindade específica, mas sim, honrar, com os seus trabalhos e com os seus pensamentos o Princípio Único que origina, organiza e rege toda a realidade cósmica, Principio esse que a linguagem maçónica chamou de Grande Arquitecto do Universo.

A Maçonaria não cultua um deus específico, com nome e identidade estabelecida por qualquer sistema linguístico, ou seja, religioso. Nomes são símbolos gráficos escolhidos para atender ao principio da identidade, isto é, para identificar os objectos e situá-los dentro de uma hierarquia sistémica, atribuindo-lhes função e finalidade. Isso é o que chamamos “Ordo ab Chaos”, ou ordem no caos, sem a qual o mundo seria uma completa anarquia, sem estrutura nem forma, longe de qualquer ideia que se pudesse fazer de um verdadeiro edifício.

Destarte, os maçons não reúnem nos seus templos para cultuar uma divindade, mas sim para trabalhar, com os seus pensamentos e acções, em prol de um Princípio de Organização mundial. E como nenhuma organização será virtuosa se os seus membros também não o forem, importa que, nos seus princípios de educação e conduta, também se veicule a necessidade de combater os vícios e exaltar a virtude.

Por isso a Maçonaria é uma organização ecuménica onde todas as crenças e religiões são respeitadas. Deus não é deus dos cristãos, dos muçulmanos, budistas, taoistas, hinduístas; e a sua representação correcta não é monopólio de católicos, evangélicos, ortodoxos, xiitas, sunitas, xintoístas ou qualquer outra estratégia linguística que grupos específicos tenham desenvolvido para figurar a divindade. Assim, o título Grande Arquitecto do Universo é um nome tão bom quanto Ormuzd, Jeová, Brahman, Ain-Sof, Verbo, ou qualquer outro que a linguagem humana lhe quiser dar. Ele é O Princípio e o Fim de todas as coisas. E nós talvez sejamos o seu Meio. Talvez, quando entendermos de facto como tudo isto funciona, então não teremos mais tantas linguagens a confundir-nos, como no episódio da Torre de Babel. Não precisaremos mais de religiões, mas de uma única crença e uma única linguagem como estratégia para instrumentalizar a sua prática. Nesse dia a “Ordo ab Chaos” terá sido definitivamente realizada e o edifício que os Obreiros da Arte Real se propuseram a construir será, finalmente completado.

 

João Anatalino Rodrigues
Resumo de palestra realizada na feira das ONGS no dia 7 de Dezembro de 2012

Publicado por António Jorge na página: https://www.freemason.pt/