Moral, Ética e Virtude

Introdução

Falar de moral, de ética e de virtude nos tempos de hoje pode parecer um contrassenso ou um tema por demais teórico para que ofereça alguma utilidade imediata para nossas vidas. Afinal, vivemos em uma época na qual muitos valores humanos parecem estar tão relegados, tão ausentes na sociedade moderna que, por vezes, poderia, até, parecer um tanto piegas tratar de tema dessa natureza. Nas célebres palavras do “Águia de Haia”, Ruy Barbosa:

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.

Mas, por isso mesmo, esta talvez seja a melhor oportunidade para fazê-lo. E, justamente, por serem tão necessários ao ser humano moderno, seja mesmo adequado o momento para falarmos de valores, para pensarmos em virtudes, sobretudo entre obreiros da Arte Real.

Moral e Ética

O filósofo catalão José Ferrater Mora observa que, às vezes, os termos moral e ética são utilizados indistintamente, embora o primeiro tenha um significado bem mais amplo que o segundo. Para ele, no entanto, a moral é aquilo que se submete a um valor (FERRATER MORA, 1978).

Um entendimento mais aprofundado da palavra moral, originária de mores, do latim, com o significado de “costumes” e, por sua vez, da palavra ética, que tem origem grega, em ethos, significando “o modo de ser”, permite avançarmos sobre o real e amplo sentido de cada um desses termos, de modo a evitarmos costumeiras confusões ocorrentes.

Assim, poderemos pensar a moral como referindo-se aos costumes de uma população como, por exemplo, o padrão moral adotado por um determinado grupo, o conjunto das normas que regulam o comportamento dos indivíduos nesse grupo, e que é adquirido através do aprendizado, ou seja, pela educação, pela tradição e pelo cotidiano de cada um.

A moral tem, no entanto, um caráter mais normativo e um traço de obrigatoriedade, e se origina na própria existência do grupamento humano. Por essa razão, é fruto da dinâmica de formação e de desenvolvimento do grupo em questão e pode, dessa forma, ser diferente da moral de outros grupamentos que, por sua vez, possuam valores próprios, diferentes.

A ética, por outro lado, é muito mais individual do que grupal. Nair de Souza Motta (1984) assim a define:

“O conjunto de valores que orientam o comportamento do homem em relação aos outros homens na sociedade em que vive, garantindo, outrossim, o bem-estar social.” (MOTTA, Nair de Souza. Ética e Vida Profissional. 1984)

Talvez, um entendimento inicial comparativo poderia ser construído se olhássemos para a moral como um conjunto de normas que regulam o comportamento de um grupo, enquanto, para a ética, olharíamos como um conjunto de valores que orientam o comportamento do indivíduo.

Podemos dizer, da ética, resumidamente, que se trata da maneira como o indivíduo deve se comportar em seu ambiente social e em relação às demais pessoas com as quais se relacionar. Podemos, ainda, considerar que, a partir de uma ética individual, se constrói um valor social e, deste, se elabora a lei, quando aquele valor já se encontra consolidado na sociedade em pauta.

A ética surgiu no seio do pensamento clássico grego, no século IV a.C., quando o filósofo Sócrates demonstrou que ela seria sempre o juiz individual das normas morais, as quais o homem deve seguir, não somente por educação ou por tradição, mas por convicção e em razão de sua própria reflexão. Podemos, então, perceber, que aqueles filósofos, desde a Grécia Clássica, foram os primeiros a pensar o conceito de ética, associando ao termo as ideias da própria moral e da cidadania.

Nesse sentido, é também importante considerarmos que as cidades-estados gregas, naquele tempo, encontravam-se em sua fase inicial de desenvolvimento e, portanto, havia uma necessidade implícita de harmonia e de honestidade entre seus cidadãos, o que fazia conceber ideias que, então, fomentassem essas condições entre os moradores da tão propalada polis grega (EGG, 2009).

Por outro lado, também não podemos perder de vista que a polis grega era, no dizer de Nicole Loraux (2007), uma “estrutura de exclusão”, já que apenas os chamados cidadãos tomavam todas as decisões da cidade política, mesmo tratando-se de uma sociedade onde também existiam as mulheres, as crianças, os escravos e os estrangeiros.

De qualquer forma, os gregos Sócrates e Platão, assim como o macedônio Aristóteles, situam-se entre aqueles filósofos que, inicialmente, lançaram as bases conceituais da ética, cada um deles com a sua devida importância. Aristóteles, no entanto, foi o que mais influenciou nossa civilização ocidental, como já nos referimos em outro trabalho, no qual abordamos a virtude entre os gregos clássicos.

Posteriormente, além do mundo grego, Jesus de Nazaré e a sua ética do amor ao próximo introduziu no pensamento de sua época o que, mais tarde, ficou conhecido como a ética cristã, da qual, avidamente, se apoderaram as igrejas subsequentes. Ao instituírem seus próprios dogmas, tais igrejas desfiguraram aquela ética no que tinha de mais original, prática que se mantém ainda hoje em nossas sociedades.

Na esteira daquela ética cristã, mas incorporando o ideal e o pensamento de sua igreja, em seu próprio tempo, surgem, então, grandes pensadores do porte de Agostinho, no século IV e Tomás de Aquino, no século XIII, verdadeiros baluartes das virtudes cristãs.

Até hoje, podemos observar que os princípios intrínsecos à ética aristotélica e à ética cristã influenciam, sobremaneira, a nossa sociedade ocidental e o pensamento dos filósofos que se empenham no seu estudo. A manutenção do conceito grego de virtudes cardinais incorporado pelas igrejas reflete, em parte, aquela ética, analisada no Grau de Companheiro, do Rito Escocês Antigo e Aceito.

Um importante filósofo de nossa era atual (1844-1900) foi Friedrich Wilhelm Nietzsche, que dedicou quase toda a sua obra à moral e às concepções éticas tradicionais, mas que, por outro lado, também foi um árduo crítico da tradição filosófica. Ramiro Fernando Lopes Marques comenta, de modo sintético, sobre esse pensador alemão:

“Nietzsche foi um filósofo atormentado com a moral e a prova disso é que, foi dos poucos, que lhe dedicou toda a sua obra. E fê- lo com tanta energia, criatividade e mestria que podemos dizer que há uma ética antes de Nietzsche e um ética pós-nietzschiana. Toda a sua obra, e em particular os ensaios Para A Genealogia da Moral e Para Além do Bem e do Mal, são um combate enérgico contra as várias tradições éticas que o precederam, nomeadamente a tradição judaico-cristã e a concepção individualista introduzida por Kant. Não é, portanto, por acaso que, ao longo da sua obra, se sinta a presença de dois ódios de estimação: Aristóteles (cuja filosofia foi apropriada pela matriz cristã medieval) e Kant (cuja filosofia abre caminho à moderna concepção de ética).”

Existem normas sociais tradicionais (a moral) que, por si, orientam todo o comportamento dos indivíduos, como se o seu cumprimento fosse obrigatório. Assim, por exemplo, mentir é moralmente condenável e, portanto, deve-se dizer a verdade (todos estamos, moralmente, obrigados a dizer a verdade). A ética surge, justamente, como forma de organizar uma norma que pode, por exemplo, não ser a mais apropriada ou digna de ser cumprida, pelo mal que possa causar considerando que, às vezes, não seria adequado dizer a verdade. O que, também, não significa que, de qualquer forma, se autorize a mentira. Mas, é dessa forma, por exemplo, que a ética não permite que uma moral seja absoluta e, por essa razão, insiste em definir quando ela deve mudar. Eis, desse modo, a ética em ação: existe uma norma, uma regra social tradicional que pode ser inadequada e, portanto, deve ser considerada de outra forma. A ética assim o faz, como nas palavras do lusitano poeta: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta” (CAMÕES, 2007).

Podemos, também, considerar uma situação hipotética, na qual alguém esteja morrendo, necessitando de um medicamento cujo valor, de imediato, o torna completamente inacessível. É quando um indivíduo decide furtá-lo para salvar aquela vida. A norma (moral) é não roubar, mas a ética em ação privilegiou o valor representado pela vida, em detrimento da norma.

Como exemplo derradeiro, durante todo o período que se estendeu entre os séculos XVI e XIX, a escravidão humana era considerada moralmente aceitável e não era errado ter escravos. Pelo contrário, algumas sociedades privilegiavam a posse desses escravos e enalteciam o status de “senhor de escravos”. Hoje, qualquer pessoa é capaz de reconhecer como absurda aquela posição, dantes tão comum.

Então, podemos dizer que a moral mudou, os costumes mudaram, assim como as regras reformularam-se a partir desses posicionamentos novos onde a ética humanista se manifestou contra o status quo da moral que imperava à época.

Virtude

A virtude, por seu turno, pode se caracterizar como uma qualidade, um hábito positivo de se insistir na prática do bem, vale dizer, daquilo que é correto, decente, justo, honesto, etc., e que é desenvolvido pelo indivíduo através do próprio exercício e da constância de sua prática.

A virtude, portanto, fomenta a ética na prática constante, tanto das ações moralmente corretas, como também no exercício de outras tais que irão corrigir a moral implantada, estimulando, assim, a evolução moral dos indivíduos e, consequentemente, de um povo. Desse modo, aqui, talvez, resida a essência da arte de levantar templos à virtude.

Um pensador moderno, bastante afinado com as visões de Aristóteles sobre a virtude, é o conhecido filósofo escocês Alasdair Chalmers MacIntyre. Trata-se de um crítico radical do projeto iluminista moderno e um defensor inconteste da ética clássica das virtudes ‒ uma posição, como vimos, diferente da adotada por Nietzche, no que se refere ao platonismo.

O seu pensamento se caracteriza por uma firme e erudita apropriação das teorias morais e políticas dos gregos antigos aos nossos dias. Ele considera que as virtudes são aquelas disposições que, não apenas mantêm as práticas e nos permitem alcançar os bens internos a essas práticas, mas nos conduzem a uma busca do bem, nos auxiliam a vencer os riscos, perigos, tentações e as distrações que encontramos, e a procurar um permanente e crescente autoconhecimento e crescente conhecimento do bem (McINTYRE, 2001).

Para sua concepção de virtude moral, MacIntyre (2001) toma como ponto de partida a teoria das virtudes de Aristóteles e da ética cristã, adotando-as como seus dois principais paradigmas (CARDOSO, 2010).

Uma disposição firme e constante de praticar o bem: eis a virtude, em poucas palavras, assim como a vê o pensamento exarado dos ensinamentos da Maçonaria. A esse conceito, deve -se agregar a ideia de uma verdadeira inclinação, vale dizer, de uma tendência para a prática do bem. André Comte-Sponville (2009) acrescenta que ela, a virtude, é o próprio bem, em espírito e verdade. E o bem não é para se contemplar, mas para se fazer e, desse modo, a virtude é o esforço para se portar bem que, em última instância, define o bem nesse próprio esforço.

Para o filósofo alemão Josef Pieper, considerado um dos mais conhecidos pensadores cristãos da atualidade, dono de uma vastíssima produção literária, a virtude é a força com a qual o homem é inclinado a fazer o bem. Seguindo o pensamento de Tomás de Aquino, Josef Pieper considera, como elemento mais importante para o conceito de virtude, assim como apontado por Aristóteles, o fato de que a virtude é um hábito.

Esse conceito é insistentemente repetido neste trabalho, como o exercício da prática do bem também o é na formação da virtude.

Por sua vez, Emmanuel Kant considera o valor moral de uma ação como não residente nela própria, mas no motivo que levou o indivíduo a praticá-la. E que tal motivo deve consistir, unicamente, no respeito à lei moral, obtida a partir da razão e livre de quaisquer determinações empíricas, como, por exemplo, as inclinações do indivíduo. O respeito ao dever, somente, é, assim, condição necessária para a atribuição de um valor moral genuíno a uma ação (PETRY, 2007).

Com isso, Kant mostra que as ações que têm presentes as inclinações como seus motivos não poderiam ter valor moral. A possibilidade das virtudes constituírem um aspecto importante da ação no que diz respeito à sua moralidade é eliminada, uma vez que o respeito ao dever é a condição subjetiva para o valor moral da ação (Ibid).

Para o filósofo brasileiro André Luiz Souza Coelho:

“Toda virtude é distinção de caráter, quer dizer, é posse de certa qualidade, disposição e motivação específica que falta aos demais (às pessoas comuns‟) e por isso dota a pessoa virtuosa de um brilho próprio, que a torna merecedora ora da admiração, ora da inveja dos demais (aqui, ambos, admiração e inveja, poderiam ser considerados dois pólos do mesmo padrão de reação diante do que lhe é superior).”

A abordagem ética da virtude na modernidade relaciona-se com o raciocínio intelectual, mas também, e sobretudo, com o caráter e a busca de excelência das práticas conduzidas pelo indivíduo. Assim, responder às questões “Como devo agir?” e “Que tipo de pessoa devo ser?” é o exercício permanente que se coloca diante do homem, em geral, e do maçom, em particular.

O pensamento do mundo moderno, no entanto, não pode considerar virtuoso e moralmente válido um ato a partir, tão somente, de seu julgamento interior e dos valores que lhe são implícitos, por mais consensual que possa ser. É mister que se veja, antes, os resultados dele decorrentes, isto é, quais as consequências da ação tomada o que, no dizer de Claudio Mano, pode assim ser entendido: “a virtuosidade da ação não é mais inerente ao ato, mas sim dependente de uma avaliação posterior, efetuada pela sociedade”.

Conhecer as principais virtudes humanas, absorver o seu entendimento e exercitá-las como modo de vida, como traço de caráter nas ações práticas da vida diária é o que as consolida e, enfim, caracteriza o homem virtuoso, uma vez que o hábito da retidão impele esse homem virtuoso a uma vida reta. Esse é o sentido prático de “polir as arestas” para aperfeiçoar as pedras que constroem o templo interior de cada um de nós. Eis, enfim, como antes nos referimos, a operacionalidade da construção de templos à virtude.

Segundo o professor André Luiz Souza Coelho, pode-se reconhecer qualquer virtude a partir de seus quatro elementos constitutivos, quais sejam, aqueles que se referem à situação, à emoção, à ação e à finalização do ato virtuoso.

O primeiro, o componente situacional da virtude, é o que se refere ao tipo de circunstância ou de situação que requer o exercício daquela virtude, como no caso da coragem, que requer uma situação de risco, por exemplo, para que um ato, naquela circunstância, se reverta de virtuosidade. Diante da situação que se apresenta, deve surgir o segundo elemento constitutivo das virtudes, o que se refere à emoção envolvida com o quadro que se tem diante de si. Trata-se, desse modo, do sentimento que é despertado no indivíduo e o impele à ação. Este é o terceiro dos componentes, o que define que ação é requerida pela situação, a qual é apontada pelo sentimento desperto. E, finalmente, existe um componente de finalização, que remete ao propósito que a virtude requer.

Considerações Finais

A partir de considerações, ainda que singelas, como as que compilamos neste pequeno trabalho, podemos, os obreiros da Ordem Real, laborar mais precisamente na implantação dos hábitos que constituirão as virtudes maçônicas de cada um, já cônscios da moral de nosso tempo, aprimorada esta, no entanto, pela ética maçônica, através da qual nos pautamos, a fim de que, como tais, sejamos reconhecidos.

Ricardo B. Buchaul
ARLS∴ “Arquitetos da Harmonia” Nº 2829 – GOSP/GOB

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. MacIntyre e a Ética das Virtudes. UERJ. Disponível em: . Acesso em: 24 jun 2012. BUCHAUL, Ricardo B. As Virtudes de Todo Dia. No prelo. CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. CARDOSO, Flora Rocha. A Teoria das Virtudes de Alasdair MacIntyre. UFMG, 2010. COELHO, André Luiz Souza. Ética: Coragem. Blog Filó- sofo Grego. Disponível em: . Acesso em: 19 jul 2012. COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 2009. EGG, Rosiane Follador Rocha. História da Ética. In Videoaula do Curso “Ética nas Organizações”. Curitiba: IESDE, 2009. FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1978. HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2007. LORAUX, Nicole. A Tragédia Grega e o Humano. In Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. McINTYRE, Alasdair Chalmers. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001. MANO, Claudio. Ética, virtudes e ordem social: de Aristóteles ao mundo atual. UFJF. Disponível em: . Acesso em: 1o jul 2012. MARQUES, R. F. L. A Ética de Friedrich Nietzsche (1844 – 1 9 0 0 ) . D i s p o n í v e l e m : . Acesso em: 17 ago 2012. MARQUES, R. F. L. Ética da virtude e desenvolvimento moral. Disponível em: . Acesso em: 1o de jul 2012. MOTTA, Nair de Souza. Ética e Vida Profissional. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1984. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. São Paulo: Escala, 2008. OLIVEIRA, Ruy Barbosa de. Triunfo das Nulidades. Trecho do discurso “Requerimento de Informações sobre o Caso do Satélite”, proferido no Senado Federal, no Rio de Janeiro, em 17 de dezembro de 1914. ORC COTRIM, Policarpo. A Ética das Virtudes no Pensamento de Josef Pieper. Disponível em: . Acesso em: 29 jun 2012. PETRY, Franciele Bete. O Papel da Virtude na Ética Kantiana. In Etich@ – Revista Internacional de Filosofia da Moral, Vol. 6, No 1. Florianópolis: UFSC, 2007.

 

Publicado originalmente em “O Ponto dentro do Círculo”:  https://goo.gl/tgDQV6