Morra bem.

 
Um dos meus textos mais conhecidos chama-se A Morte Devagar, que publiquei na véspera de Finados de 2000 e que logo ganhou o mundo com o título Morre Lentamente. No início foi equivocadamente atribuído a Pablo Neruda, por isso o espalhamento e seu sucesso.

Passado tanto tempo, já me devolveram a autoria e hoje esse texto virou canção na França e entrou no roteiro de um file italiano - sem falar nas traduções para o espanhol, que alguns desconfiados ainda acreditam ser seu idioma de origem.

Na época, aproveitando a proximidade do Dia dos Mortos, escrevi puxando as orelhas (não os pés) daqueles que morrem em vida: os que evita m o risco, a arte, a paixão, o mistério, as viagtens, as perguntas - apenas atravessam os dias respirando.

Hoje, neste dia de Finados, 14 anos depois, reitero: não morra lentamente. Morra rápido, de uma vez só, sem delongas. Morra quantas vezes for necessário.

Quando fiz meu mapa astral, ouvi da astróloga: "Você tem dificuldade de lidar com ambivalências, gosta das cosas esclarecidas, para o bem ou para o mal". E ela concluiu: "Morrer é algo que você faz bem, ficar em banho-maria, não".

Sombrio? Soturno? Ao contrário. Entendi com clareza sobre o que ela falava. Morte é a antessala da luz. Não a morte definitiva, que encerra o assunto, mas as diversas mortes em vida, os vários falecimentos a que somos submetidos. 

É preciso morrer bem enquanto se vive.

Cada final de amor é uma pequena morte, por exemplo. Morre lentamente quem fica alimentando fantasias de retorno, planejando vinganças, cultivando lembranças com naftalina. Sei que dói, mas não deixe esse amor definhando na UTI, dê logo a extrema-unção, acabe com isso, morra rápido, morra de vez, para que possa renascer ligeiro também.

Finais de carreira, finais de amizade, finais de ciclo: mortes que acontecem aos 30, aos 40 anos, em qualquer idade. Dói, dói demais, não estou negando a dor, mas o que você prefere? As dúvidas, as ilusões, o apego? Prefere a sobrevida a uma vida nova? Confie na experiência de quem já se enterrou algumas vezes. Morra. Morra bem morrido, baby.


Final de juventude, final da faculdade, final de uma viagem de intercâmbio: vai ficar agindo como se tivesse 18 anos para sempre? Mate o garoto, renasça adulto.

A morte daqueles que amamos é trágica, mas nossa própria morte, não. Ela é uma contingência de nossa longa existência, e essa é uma frase cínica, simplesmente é assim. Nossos sonhos morrem. Nosso passado morre. 

Nossas crenças, nossas fases. Fazer o que? Morra bem.

Morra com categoria. Com dignidade. O menos lentamente possível. Morra de morte bem arrematada, uma, duas, três mil vezes, morra em definitivo sempre que for exigido, para sobrar tempo.

Tempo pra vida em frente.
* Martha Medeiros
nas­ceu em Porto Ale­gre em 20 de agosto de 1961 e é for­mada em Comu­ni­ca­ção Social/Publicidade e Pro­pa­ganda pela PUC do Rio Grande do Sul. Tra­ba­lhou durante 13 anos como reda­tora e dire­tora de cri­a­ção em diver­sas agên­cias, quando então pas­sou a se dedi­car exclu­si­va­mente à lite­ra­tura e às colu­nas de jor­nal.
Até essa data, tota­liza 23 livros publicados.
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