O DNA Maçônico
O ano 2016, um dos mais difíceis – senão o mais difícil para o Brasil – , chega ao fim. E permanece a pergunta: a democracia republicana, como posta em prática, tem garantido a ordem e o progresso de nossas instituições? E a maçonaria que praticamos – cópia equivocada dos sistemas políticos republicanos – contribuiu para tornar feliz a humanidade, combatendo a tirania, a ignorância, os preconceitos e os erros, promovendo o bem estar da Pátria?
A maçonaria é uma criação humana fundada nos princípios tradicionais da liberdade, igualdade e fraternidade entre as pessoas. Essa tríade, composta pela independência legítima dos cidadãos e das nações, pela submissão às mesmas leis, direitos e obrigações assim como pela harmonia entre os que lutam por uma mesma causa, é que torna nossa Ordem um organismo vivo.
Definida como organismo vivo, composto de seres humanos vivos, a maçonaria está sujeita ao desenvolvimento ou passagem por etapas sequenciais distintas. Está sujeita à lei natural do crescimento pela absorção e reorganização cumulativa de sua cultura no meio em que atua. Organismo vivo que é, a maçonaria tem que ter movimento, interno e externo, com resposta aos estímulos e sempre avaliando as características do ambiente e agir seletivamente em resposta às mudanças em tais condições.
Noutras palavras, a maçonaria tem que se reproduzir e transformar-se gradualmente, adaptando-se ao meio por sucessivas gerações, sob pena de vir a morrer pelo inexorável processo de excreção dos excessos sociais não atuantes ou indesejados.
Enfim, tudo isso seria mera biologia se não comportasse um psicologia paralela. O ano 2016 chega ao fim com a ordem e o progresso seriamente ameaçados na república, certamente com uma humanidade menos feliz, com o recrudescimento das tiranias, da ignorância e dos preconceitos.
As novas gerações da maçonaria nasceram durante o regime militar de 64 e cresceram grudadas nos aparelhos de televisão. Chamam isso de "cultura da modernidade", mas na verdade é a maior mudança de paradigma já encarada pela sociedade atual.
Frente ao caos que se instalou em diversas nações do mundo, seja pelo populismo de governos corruptos, seja pela desarmonia entre os poderes republicanos, a maçonaria ainda se debate em fórmulas arcaicas de "poderes", tais como "legislativos maçônicos", "judiciários maçônicos" ou mesmo "executivos maçônicos". Repito o que disse numa mensagem anterior: "Vocês podem vasculhar as Constituições de Anderson de cabo a rabo, os Landmarks de rabo a cabo; e não encontrarão uma linha sequer, uma só palavra, sobre "poderes" na maçonaria, tais como um "legislativo", um "judiciário" ou mesmo um "executivo".
Ao referirem-se como "executivos maçônicos", estabeleceu-se um novo valor no seio da "moderna" maçonaria com as palavras de ordem LÍDER, LIDERANÇA e LIDERAR, conceitos inexistentes em toda a filosofia maçônica, pois a Maçonaria (agora com "M" maiúsculo) foi concebida para aperfeiçoar o homem, não para torná-lo comandante dos outros, forjando modificações sobre o pensamento e comportamento internos e externos mediante autoridade, prestígio ou pretexto de coordenação. Este é um ponto muito delicado que merece ser analisado através dos princípios da retórica – arte da eloquência e de bem argumentar, uma das três disciplinas de que se constituía otrivium – que na maioria das vezes, em "moderna maçonaria" vem se transformando em armadilha do sofisma (argumentação ou raciocínio que aparentam verdade mas que cometem incorreções internas inconsistentes ou deliberadamente enganosas).
É verdade que Albert Pike, referência maior do REAA, refere-se a "força cega do povo" que deve ser economizada e também "gerenciada"; mas é pelo intelecto – escreve ele em "Moral e Dogma" – que é para as pessoas o que a fina agulha da bússola é para o navio ("It must be regulated by Intellect.Intellect is to the people and the people's Force, what the slender needle of the compass is to the ship"…)
Um rebanho de carneiros segue obediente um script definido pelo pastor; uma alcateia segue os passos do lobo alfa. Mas em nenhum desses casos o pastor ou o lobo alfa promovem mais intelecto aos carneiros, ovelhas ou lobos – portanto não são "líderes", mas autoridades impostas pelo medo ou pela força. Recolham as pedras os que já se preparam para lançarem imprecações contra mim, pois quando falo de intelecto não me refiro a "intelectual", mas à faculdade de compreender e à atividade pensante inerente à condição humana.
O intelecto é diferente, como se expressou Albert Pike: fina agulha da bússola (the slender needle of the compass), objeto delicado e frágil capaz de organizar o curso e a "força cega" de um navio ou transatlântico.
A Maçonaria fundamentou-se no Iluminismo, "movimento intelectual do século XVIII, cuja principal característica é centralidade da racionalidade crítica e o questionamento (filosófico) que recusa todas as formas de dogmatismo. A colocação de um "homem alfa condutor" contaria todo o pensamento da preponderância racionalista em benefício de princípios da "certeza absoluta".
Repito aquela narrativa da Grécia antiga: após a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso, Calíbio, tentou agredir Autólico com um cajado; este o segurou pelas pernas e o derrubou afirmando que ele "não sabia governar homens livres". O excesso de leis se deve à diminuição do amor entre as pessoas; deve-se ao aumento da desconfiança entre as pessoas.
Nas Lojas, o Venerável Mestre de Loja não precisa ser um líder, mas uma pessoa que incentive o questionamento mediante a racionalidade crítica ou intelecto. Daí a complexidade do dever de governar homens livres. De outra forma permaneceremos como uma espécie de igreja ou seita onde as ideias de uma pessoa (ou grupo) prevalecem sobre a verdade e a razão. Esse tipo de "liderança" é o refúgio para quem não possui o DNA maçônico.
Quem carece de líderes é a política, e isso também não temos; sequer temos!
Repito, este é um ponto muito delicado que precisa ser analisado através dos princípios da lógica e da retórica. Para bons entendedores, meia palavra basta... ou bastaria.
Apesar de tudo, nossas cerimônias, juramentos, atos, e ações são concretizados em plena e total reverência às Constituições de Anderson e aos imutáveis Landmarks; até os Neófitos juram obedecê-los, desde o primeiro dia, sem saberem do que tratam. Faltam, portanto, o questionamento e a racionalidade crítica; sobra com excesso a obediência cega e a eterna repetição de erros.
A Maçonaria precisa permanecer fiel aos princípios tradicionais quanto ao conteúdo; mas deve se reproduzir e transformar-se na forma, adaptando-se ao meio social, sob pena de vir a desaparecer ou transformar-se noutra coisa. A dialética histórica conduziu muitas instituições ao esquecimento ou embalsamação, inexorável processo de eliminação dos excessos sociais não atuantes ou indesejados.
José Mauricio Guimarães
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