O lobo da estepe: sobre os vários eus que existem em nós

O Lobo da Estepe, romance do alemão Herman Hesse, é atemporal por tratar de uma condição ainda presente em muitos de nós: a disputa entre dois lados da mente pelo domínio de nossas atitudes e pensamentos.

Muitos de nós temos a sensação de que viemos de fábrica com um conjunto de vários EUs. A cada momento, ou no percorrer da vida, percebemos que mudamos de personalidade conforme a situação, de forma não necessariamente planejada. Ainda assim, pouco nos abalamos por isso. É o caso, por exemplo, de termos uma atitude formal no trabalho, uma conversa muito casual com o grupo de amigos e uma orientação maternal diante de nossa família. É a vida exigindo que ocupemos de ótima forma todos esses papéis enquanto extraímos do psiquismo as referências e forças para a nossa melhor atuação.

Mas alguns outros de nós temos a nítida sensação de sermos habitados por exatamente dois lados. Nem um, nem três, nem muitos: apenas dois EUs. E estes dois lados não se dividem de acordo com os territórios da vida. Ou seja, não é o caso, por exemplo, de personificarmos um EU no trabalho e outro EU em casa. É diferente. Os dois EUs disputam constantemente qual irá se sobrepor na consciência e tomar as rédeas de nossa atuação em qualquer que seja o território. Aí, acontece que, no trabalho, um dia estamos domesticados, felizes e complacentes. No outro, temos vontade de jogar tudo para o alto e somos ríspidos com os que nos incomodam. Em casa, há dias de paciência para a família e para as atividades do lar. E há outros dias em que almejamos a total solidão dentro de quatro paredes tamanha é a dificuldade de estabelecer espaço para o outro.

O livro O Lobo da Estepe, romance de 1927 do escritor Herman Hesse, é aclamado até hoje por ser atemporal. E perpassa anos sem envelhecer por falar dessa divisão dos sentimentos que acomete muitos de nós. Isto se chama cisão, o que significa que há uma disputa interna entre nossos EUs para saber qual terá domínio de nossas atitudes diante das demandas da vida.

Na história do Lobo da Estepe, Harry Haller é um sujeito culto e auto-suficiente. Não acredita nas relações humanas, Despreza as pequenezas da vida burguesa. Não tem vontade de se envolver com ninguém. É um lobo solitário, um niilista que vive na Berlim do início do século XX, e resolve um dia acabar com sua vida diante da dificuldade de enxergar sentido no mundo. Mas é bem neste dia em que resolve se matar que conhece uma mulher que lhe traz lampejos de fé na humanidade. Ao decidir viver e relacionar-se com ela, Harry é então tomado por ataques de pânico e por crises fortes de angústia. Afinal, estava abrindo mão do isolamento e da arrogância defensiva que, diante do que agora experimentava, já não lhe funcionavam mais. O homem onipotente e auto-suficiente virava um menino imaturo ao entender que era mais um ser humano como outro qualquer.

A cisão do EU é este mecanismo dual presente no personagem de Hesse e em muitos de nós. Diante das dificuldades em lidar com a angústia que sentimos ao entender que não somos tão especiais como gostaríamos de ser, é possível que nosso psiquismo estabeleça inconscientemente um corte para, de um lado, negar este desamparo, e do outro, acomodar-lhe. Assim, uma parte nossa pode manter a crença de que somos únicos e especiais, e que nada de mal nos acontecerá: nosso avião não vai cair, nossa sorte será fortuita, nossa vida será tranquila, quiçá especial. Por outro lado, também entendemos que, se não formarmos bons laços e não percebermos que somos tão frágeis como outros seres humanos, não conseguiremos nos sustentar de forma auto-suficiente por muito tempo. É a realização de que temos que engolir muitos sapos. Temos que pegar a mesma fila que todas as outras pessoas para fazer valer nossos direitos. E estamos suscetíveis aos mesmos perigos que os outros e, por isso, precisamos tomar os mesmos cuidados.

Harry, o lobo solitário de Herman Hesse, sofridamente abre mão da crença em sua magnitude em função da aposta na vida e na relação com os outros. Sofre uma queda vertiginosa de sua posição defensiva onipotente ao entender o quanto precisava das pessoas. Neste momento, tornou-se fundamental reinventar-se. Era questão de sobrevivência. E, ao conformar-se com o fato de que sua singularidade era tão especial quanto a dos demais seres humanos, passou a escolher os momentos da vida em que, sim, poderia sentir-se único e os outros em que deveria entender que era mais um na multidão. Discrimar de forma objetiva os territórios que mais lhe importavam conquistar o ajudariam a escolher que lado do seu psiquismo iria privilegiar. E, assim, não mais iria se deixar ser dominado pela luta eterna entre dois EUs que não conversam.

 

LEONARDO MOURA

Leonardo Moura é o carioca mais paulistano que existe. É jornalista, publicitário e psicanalista.

publicado em literatura por Leonardo Moura.