O novo rosto da verdade

Terá dito Platão que “verdade conhecida é verdade obedecida”. Esta simplicidade em tom imperativo revela algo que, na realidade, não é possível ensinar a alguém. Ou a sentença diz algo que já sabíamos de antemão, mas para o qual não tínhamos uma expressão verbal adequada, ou permaneceremos na periferia da sua significação, mesmo embora a consigamos explicar a alguém. Para a maior parte das pessoas, obedecer a uma verdade limita-se em não nega-la e, no máximo, em defendê-la quando é posta em causa numa discussão qualquer, ou seja, é algo que fica circunscrito à arte da argumentação.

Contudo, não temos de achar que a obediência à verdade é uma consequência posterior ao seu conhecimento. A verdade só é conhecida ao ser obedecida, não bastando, porém, ser obedecida sem a consciência dessa obediência ser uma participação na verdade. Então, o conhecimento possui embutido um elemento ético de responsabilidade, por isso o emburrecimento é uma consequência inevitável do acanalhamento. 
 
Cada verdade exige um nível de obediência específico, que pode ir desde uma simples adaptação da conduta, identificável exteriormente, até uma harmonização no estado de alma, embora esteja sempre em causa um elemento de intimidade perante si mesmo. Numa cultura em que a seriedade ainda é a nota dominante, embora a maioria dos homens não tenha o apelo da verdade, eles ainda lhe prestam alguma obediência, tanto por mimetismo como por respeito. Mas numa cultura relativista como a nossa, parece que o comum dos homens – a despeito da sua classe social – está condenado a um limbo axiológico.
 
A situação parece-me, no entanto, ainda mais complicada. Tal como os felinos mostram, já em tenra idade, um instinto para a caça, o ser humano já nasce com o apelo da razão. Não se trata, em geral, de um apelo para o conhecimento universal – a verdade – mas uma tendência para a classificação e unificação dos dados da realidade, que nos aparece como irresolvida. Porém, mesmo as capacidades racionais mais elementares necessitam de um referencial tido como absoluto e imutável, que normalmente não é uma preocupação individual porque é dado naturalmente pela religião, pelos mitos, pelas profecias, etc. Tendo tudo isto sido removido da sociedade moderna, cada indivíduo é obrigado ao impossível: descobrir e manter, por si mesmo, um absoluto.
 
Descartes foi pioneiro neste aspecto, e tentou fazer da certeza subjectiva que o “eu” tem da sua própria existência o fundamento objectivo do conhecimento, mas mesmo ele teve que, a determinada altura, pedir ajuda para Deus. O cidadão comum, que não tem pretensões epistemológicas mas quer apenas “orientar-se”, abdica do rigor cartesiano mas socorre-se do “seu” artifício de criar um absoluto a partir de uma convicção pessoal. O relativismo destrói, em termos gnosiológicos, os conceitos de bem e mal, verdade e erro. Contudo, em termos psicológicos tudo isto permanece: o bom, o verdadeiro e o belo passam a identificar-se com o conteúdo da certeza subjectiva, e tudo o que se lhe oponha é falso, horrendo e mau.
 
Isto conduz, naturalmente, a uma forma extremada de individualismo, a uma solidão fundamental e a uma incompreensão do outro aparentemente definitiva. Contudo, abre também a porta a um novo colectivismo. Quando pensamos em colectivismo imaginamos a turba marchando compactamente, gritando palavras de ordem. Hoje em dia a turba está dispersa, cada indivíduo isolado, uns gritando para a televisão, outros postando no facebook, outros largando umas “bocas” junto à máquina do café. Cada um acha que teve um rasgo de consciência único, que mais ninguém a não ser ele percebeu a situação, quando em todos perpassam as mesmas ideias e emoções de base. Dá-se isto porque o referencial que cada um criou foi na verdade absorvido da linguagem corrente, eivada de senso comum fabricado e cheia de pistas enganosas para a “luz”.

Mário Chainho
 

---  BREVE COMENTÁRIO: O vulgo homem moderno é menos racional do que o homem do neolítico, no sentido em que tem uma maior dificuldade em se projetar ontologicamente para fora dele mesmo. A religião do homem atual é “ele próprio” e a sua subjetividade. A intersubjetividade e a objetividade deixaram, para ele, de ter um valor real e objetivo, e não existem senão em função da sua subjetividade. O homem atual vulgar é anticientífico — e, por isso, anti-lógico. Ele pensa que a Lógica tem uma validade puramente subjetiva: aquilo que é lógico, é lógico apenas e só para ele. E, por isso, “os valores da ética não podem ser universais” — pensa ele: “eu tenho a minha ética que é só minha”.

Publicado no JB News Nº 1.114 de 20/09/2013