O que faltava.

Enquanto a criança brincava no tapete da sala, o tempo parecia fluir de maneira diferente. Nem mais rápido nem mais devagar, apenas diferente. Alheia aos acontecimentos da casa, ela se entretinha consigo mesma, sem brinquedos coloridos e luminosos. Sentia-se confiante no próprio reino, como se estivesse rodeada por seus súditos mais fiéis. Naquele breve momento, nada desejava. Naquele instante, nada mais lhe faltava.

Na mitologia grega, Platão conta que Eros seria o desejo que sentimos pelas coisas e pessoas. A mãe de Eros seria Penúria, a falta.

Dessa forma, a julgar pelo pensamento grego, estaríamos sempre a desejar o que nos falta: intuitivamente colocando a carência como a origem de tudo que almejamos na vida.

Não é possível precisar em que momento da história de cada um isso acontece. Mas há um instante claro onde essa sensação de escassez e insatisfação dá partida e engrena a primeira marcha para nunca mais desligar o motor.

A falta pode ser a grande faísca que movimenta nossos sonhos e ações. O problema é que nem sempre compreendemos que isso deveria nos impulsionar. Sentimos o desejo e nada fazemos, deixando que ele se aloje no peito apertando até que vire uma angústia pulsante. Caminhamos ostentando esse amuleto de nossos desejos não realizados, olhando para as vitrines – das lojas e das redes sociais – ao invés de olhar para o que pode trazer o único futuro que realmente nos pertence.

- Olhe para ela brincando, parece que não falta nada no mundo.

Não faltava mesmo. Quando crianças, pouco antes do instante em que começamos a nos adulterar, acreditamos que é possível nos alegrarmos com o que já temos. Antes que alguém nos ofereça algo, antes que a televisão anuncie ou que o tablet brilhe nas mãos de alguém. Essa capacidade de contentamento é um valor que não se perde dentro da gente: nós é que colocamos no fundo baú, onde é difícil de acessar. Adultos, passamos a querer desenfreadamente: o corpo perfeito, o carro do ano, o emprego sem problemas e o marido dos sonhos. Curiosamente, o desejo nos leva a dois caminhos: ou sentimos a angústia e a frustração de não conseguir ou passamos a almejar algo novo no segundo seguinte em que conseguimos o que queríamos. O desejo sempre tem fome se não o alimentamos com algo maior. Talvez devêssemos desejar um pouco menos aquilo que nos falta e um pouco mais do que temos; desejar um pouco menos o que não depende só de nós e um pouco mais aquilo que realmente depende.

- Estou aqui, mamãe, vem brincar comigo!

A frase soou como um estrondo na alma. De olhos marejados, a mãe compreendeu que a alegria de sua pequena estava no presente. Dentro dela, não fora, no outro, no amanhã ou em outras tantas circunstâncias. Afinal, de que adiante colocar todos os desejos no futuro, saindo do hoje e criando um aperto na alma?

Sentiu um alívio e beijou a testa daquela criança que já sabia ensinar: se nos concentrarmos na brincadeira, todo o hoje vira futuro, naturalmente.

*Thais Ferreira Gattás

É roteirista, escritora, cronista ou tudo junto e misturado. Escreve todas às sextas-feiras para o jornal Notícias do dia e é colaboradora do jornal Psicologia em Foco. Além disso, atua como criadora de conteúdo para os mais diversos veículos de comunicação.
Entre em contato com a autora: thaisferreiragattas@gmail.com.