O que se vê por trás das lentes.

 

 

Por trás das lentes embaçadas, vê-se um mundo desfocado, repleto de verdades únicas e incontestáveis. Com uma visão que parte de pontos de vista diversos, este ensaio analisa a importância da busca pelo saber e sua influência sobre a realidade que se enxerga.

Ver o mundo é um ato dicotômico. É necessário trazer de modo latente verdades fundantes - princípios - para, ao receber impulsos, gerar conhecimento. Sendo, portanto, o conhecimento produto tanto do meio externo quanto do egoístico.

Para tanto, não é possível manter embaçadas as lentes que intermedeiam o contato sensorial com a vida, pois é esta a principal característica da ignorância: a perda do contato com a realidade, sobretudo pelo fato de ser preciso ter pontos de vista para julgar, não apenas partindo de um olhar definido sobre os fatos. É preciso lançar os olhos sobre acontecimentos, conhecer as faces de uma mesma verdade e, assim, tirar conclusões analíticas. Com as lentes embaçadas, isso não é possível.

Faz-se mister dizer isto pelo fato de não existir verdades absolutas, mas verdades que provêm de um mesmo fato, o que demonstra a importância de aferir fontes, buscar contextos e significados para alcançar a racionalização daquilo que se pensa. O que se confirma nas palavras do epistemólogo suíço Jean Piaget, quando diz, em "Sabedoria e Ilusões da Filosofia", que “[...] a filosofia tem sua razão de ser e deve-se mesmo reconhecer que todo homem que não passou por ela é incuravelmente incompleto”, pois, entendendo a filosofia – em uma definição bastante elementar - como busca do saber, fala-se da necessidade de, enquanto ser pensante, o homem buscá-la para saciar sua existência, equilibrando razão e emoção.

É necessário, porém, remover os antolhos que embaçam as lentes e limitam a visão para não dar espaço à ignorância expressa, pois a ignorância é inevitável no que diz respeito à limitação do ser, mas, no que se deseja expor, o ignorante se configura como indivíduo que não quer enxergar, reproduzindo palpites quando, na verdade, não possui domínio do assunto que expõe. Salienta-se que tal fato não restringe o direito que possui de expressar o que pensa, mas evidencia a inobservância de aspectos básicos para a formulação das ideias.

Afinal, reproduzir o que chega aos ouvidos é útil para quem deseja se manter inerte e murmurante, sobretudo no que diz respeito ao senso comum (o qual, no dizer de Chaïm Perelman, “[...] consiste em uma série de crenças admitidas no seio de uma sociedade determinada e que seus membros presumem serem partilhadas por todo ser racional"), dando espaço ao midiatismo que dissemina o ódio em nome de seus interesses, espalhando ventríloquos que bravejam raivosamente na ilusão de lutarem uma luta própria, enquanto lutam em nome daqueles que manipulam com os tentáculos da comunicação, visando a interesses do capital.

Então se fala na figura do indivíduo que, convenientemente, ignora a realidade por não ser sua. Conhecendo-a, mantém suas convicções e brados porque, possuindo as lentes cristalinas, não quer enxergar o que se passa aos lados, mas apenas diante de seu próprio umbigo. Indivíduo que, de modo cético, afirma inalteravelmente que tudo o mais inexiste, pois não concerne aos seus interesses mesquinhos, mas de uma coletividade desprezada por seu egocentrismo. Afinal, na visão do ser que braveja seus interesses pelos ares, a inércia é deixada apenas quando algo o atinge ou o faz a um dos seus.

Um bom exemplo de como o conhecimento influi na forma como vemos o mundo é o conto - atemporal - de Machado de Assis, "Idéias de Canário", no qual se encontra a figura do canário de vistas turvas, que restringe a existência àquilo que conhece, pois, estando preso em sua gaiola, sendo submetido a um rígido ponto de vista, define o mundo segundo sua visão exclusiva afirmando que, de resto, "[...] tudo é ilusão e mentira".

Então surge a reflexão deixada pelo imortal escritor: não há conhecimento no cárcere, mas verdades ignorantes que não analisam os fatos. É necessário libertar-se das grades, olhar de modo dinâmico do céu e, então, definir que coisa é o mundo. O mundo, daqui de baixo, com as lentes embaçadas de quem não quer ver, é demasiado restrito. É preciso estar livre para alcançar a dicotomia da produção do conhecimento.

Além disso, faz-se necessário pontuar outra questão deixada por Machado: o tempo biológico, marcado por sua efemeridade, evidencia as lacunas do tempo histórico na memória de quem murmura, tendo em vista que se esquece do passado, mas emite seu não saber sobre o presente, como se toda a estrutura social fosse produto de um instante.

Somente a filosofia - no entendimento já citado - pode clarear os olhos e abrir a mente para as tantas verdades que rodeiam cada ser, desalienando e desordenando uma maioria que compactua com ocas ideologias infundadas, vendidas na imprensa, taxadas com o custo de um futuro. É uma questão de posicionar-se e ouvir sua própria voz, relativizando as certezas e verdades que parecem absolutas, como se vê na cena da comédia dramática dirigida por Peter Weir e estrelada, entre outros, por Robin Williams, Dead Poets Society (“Sociedade dos poetas mortos”), que muito ensina a quem se permite a experiência de assistir com os olhos da alma.

Afinal, viver dentro de si, cercado por verdades que imperam e regem tão somente o universo particular é demasiado mecânico e artificial, reflexo de que os óculos estão nublando o sentido e de que há verdades muitas sendo deixadas de lado talvez pela falta de pontos de vista.

publicado em recortes por Ronaldo Junior.