Os cães sabem a verdade

          São quase 20 horas. Ao longe, ouço o espocar ritmado de foguetes. Devem estar anunciando a vitória do candidato Fulano no segundo turno da eleição para o cargo de prefeito. Da sacada do meu apartamento, vislumbro a aproximação de um cortejo insólito: um bando de crianças, ladeadas por adultos e cães, cantam a música que foi o carro-chefe da campanha do eleito; nos entremeios, os adultos riem, confraternizam e imprecam coisas terríveis (sei lá se verdadeiras) contra o candidato derrotado.

         – Viva o Fulano, soam quase em uníssono as vozes passantes, ao que os cães respondem com ganidos agudos e desconexos, como se lamentos fossem. Um arrepio percorreu-me de alto a baixo.   

         No ano em que Mário de Andrade escreveu Macunaíma (1928) eu ainda não havia nascido; quando Grande Otelo viveu a personagem no filme produzido por Joaquim Pedro de Andrade, em 1969, meus interesses de adolescente nem passavam perto do cinema de “gente grande”. Tomei conhecimento daquela obra modernista muitos anos depois, sem, confesso,  prestar a devida atenção ao seu conteúdo. Talvez tenha sido um erro. Talvez não.

         Ficou-me na memória, lá no fundinho dela, a falta de caráter da personagem, vivida pelo pequeno grande ator negro cuja vida foi marcada por várias tragédias. O pai morreu esfaqueado; a mãe era alcoólatra. Ator já consagrado, sua mulher matou o filho do casal, de seis anos, suicidando-se em seguida. Toda esta sólida cultura adquiri-a na Wikipedia.

         A personalidade depravada do índio Macunaima (somada às tragédias pessoais vividas por seu grande intérprete) bem retrata a verdadeira condição do povo brasileiro. Um povo tão sem identidade e sem vergonha na cara que - perdoem-me os patrulhadores de plantão - não tem mais conserto.

         A imprensa noticia que, numa cidade perdida no interior de um estado nordestino, os moradores estendem suas redes nos pórticos dos seus humildes casebres, sujeitando-se a persecução criminal pelo Ministério Público, com o intuito de apregoar aos candidatos, num macabro leilão, seus votos.

         Aqui, na capital de um dos estados mais desenvolvidos da federação, quase não há redes para se estender. Mesmo assim, corre de boca em boca que um voto não custa menos de dez reais, podendo chegar a cinquenta no segundo turno. É o que nos contam os que se candidataram mas não se elegeram, por falta de dinheiro. Sim, porque se o tivessem, os votos necessários teriam comprado.     

         As vozes daquela estranha procissão se perdiam ao longe, na escuridão que adentrava, e eu seguia refletindo sobre as verdades que o candidato eleito não pôde – e não pode - revelar aos seus milhares de acólitos que ainda estouram foguetes por toda a cidade. Verdades presentes em todas as campanhas políticas e administrações que se sucedem. Negociatas sem as quais ninguém se elege ou consegue se manter no poder. Intenções ocultas nas promessas utópicas de campanha. Inimagináveis crescimentos patrimoniais durante o exercício de mandatos eletivos. Acordos de alcova.

         Os candidatos derrotados no primeiro turno, que semanas antes bradavam com a força de seus pulmões que Fulano era ladrão e Beltrano, oligarca, mudaram de idéia rapidamente e desdisseram o dito. Bandeiras mudaram de mãos, mas as cores permaneceram as mesmas. Tudo em nome da “governabilidade”. Tudo em nome do povo e para o povo. Muito prazer: meu nome é Fulano Povo.

         Nossa gente brasileira não é mais que uma multidão de Macunaimas. Os candidatos Fulano Povo, Beltrano Povo, Sicrano Povo continuarão sendo eleitos e reeleitos ad aeternum. Todo e qualquer prefeito tem a obrigação de asfaltar ruas e construir escolas; mas também a de governar com ética e decência. Enquanto isto não for compreendido, ou assimilado, pelos eleitores, continuaremos subjugados a essa nova forma de coronelismo, na qual os votos carbonados transmudaram-se em teclas coloridas.

         No fundo, acho que, em termos de política, os cães sabem de muitas coisas que os humanos desconhecem. Um último ganido estridente fez-se ouvir ao longe. Fechei a janela da sacada e fui dormir.

* Claude Pasteur Faria.

claudefaria@terra.com.br

Originalmente publicado em https://magenco.blog.uol.com.br