OS SÍMBOLOS DA AUSÊNCIA

  

 

Através de centenas de milhares de anos os animais conseguiram sobreviver por meio da adaptação física. Os seus dentes e as suas garras afiadas, os cascos duros e as carapaças rijas, seus venenos e odores, os sentidos hipersensíveis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a  estranha habilidade de confundir-se com o terreno, as cascas das árvores, as folhagens, todas estas são manifestações de corpos maravilhosamente adap­tados à natureza ao seu redor. Mas a coisa não se esgota na adaptação física do organismo ao ambiente. O animal faz com que a natureza se adapte ao seu corpo. E vemos as represas construídas pêlos castores, os buracos-esconderijo dos tatus, os formigueiros, as colméias de abelhas, as casas de joão-de-barro.  E o extraordinário é que toda esta sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja transmitida de geração a geração, silenciosamente, sem palavras e sem mestres.

 "Lembro-me daquela vespa caçadora que sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-a, paralisa-a, arrastando-a então para o seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre. Tempos depois as larvas nascerão e se alimentarão da carne fresca da aranha imóvel. Crescerão. E sem haver tomado lições ou frequentado escolas, um dia ouvirão a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, há milhares de anos: "Chegou a hora.  É necessário buscar uma aranha..."

E o que é extraordinário é o tempo em que se dá a experiência dos animais. Moluscos parecem duas conchas hoje da mesma forma como o faziam há milhares de anos atrás. Quanto aos Joãos de barro, não sei de alteração alguma, para melhor ou para pior, que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos cantam como cantavam no passado, e as represas, as colméias das abelhas e os formigueiros  têm permanecido inalterados por séculos.

Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O seu corpo. Sua programação biológica é completa, fechada, perfeita. Não há problemas não correspondidos.  E, por  isto mesmo, ele  não possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente não possuem uma história, tal como a entendemos. Sua vida se processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade não lhes é ofere­cida, mas não recebem, em contrapartida, a maldição da neurose e o terror da angústia.

 Como são diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal  me  permite prever que coisas  ele produzirá  — a forma de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a música de seus sons — e as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram,   não existe nada semelhante que se possa dizer dos homens. Aqui está uma criança recém-nascida. Do ponto de vista genético ela já se encontra  totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a enfermidades. Mas, como será ela? Gostará de música? De que música? Que língua falará? E qual será o seu estilo? Por que ideais e valores lutará? E que coisas sairão de suas mãos? E aqui os geneticistas,  por maiores que sejam os seus conhecimentos, terão de se calar. Porque o homem, diferentemente do animal que é o seu corpo, tem o seu corpo. Não é o corpo que o faz. É ele que faz o seu corpo. 

É verdade que a progra­mação biológica não nos abandonou de todo. As criancinhas continuam a ser geradas e a nascer, na maioria das vezes perfeitas, sem que os pais e as mães saibam o que está ocorrendo lá dentro do ventre da mulher. E é igualmente a progra­mação biológica que controla os hormônios, a pressão arterial, o bater do coração. . .

De fato, a programação biológica continua a operar. Mas ela diz muito pouco, se é que diz alguma coisa, acerca daquilo que iremos fazer por este mundo afora. O mundo humano, que é feito com trabalho e amor, é uma página em branco na sabedoria que nossos corpos herdaram de nossos antepassados.

 O fato  é que os  homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se inventores de mundos, plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e palácios, construíram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram os seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram os seus mortos e os prepararam para viajar e, na ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites. . .

E quando nos perguntamos sobre a inspiração para estes mundos que os  homens imaginaram e construíram, vem-nos o espanto. E isto porque constatamos que aqui, em oposição ao mundo o imperativo da sobrevivência reina supremo, o corpo já não tem a última palavra.

 O homem é capaz de cometer suicídio. Ou entregar o seu corpo à morte, desde que dela um outro mundo venha a nascer, como o fizeram muitos revolucionários. Ou de abandonar-se à vida monás­tica, numa total  renúncia da vontade, do sexo, do prazer da comida. 

 É certo que poderão dizer-me que estes são exemplos extremos, e que a maioria das pessoas nem comete  suicídio, nem morre por um  mundo  melhor e, nem  se enterra num mosteiro. Tenho de concordar. Mas, por outro lado, é necessário reconhecer que toda a nossa vida cotidiana se baseia numa permanente nega­ção dos imperativos imediatos do corpo. Os impul­sos sexuais, os gostos alimentares, a sensibilidade olfativa, o ritmo biológico de acordar/adormecer deixaram a muito de ser expressões naturais do corpo porque o corpo, ele mesmo, foi transfor­mado de  entidade  da natureza em criação da cultura. 

A cultura, nome que se dá a estes mundos que os homens imaginam e constroem, só se inicia no momento em que o corpo deixa de dar ordens. Esta é a razão por que, diferentemente das larvas, abandonadas pela vespa-mãe, as crianças têm de ser educadas. É necessário que os mais velhos lhes ensinem como é o mundo. Não existe cultura sem educação. Cada pessoa que se apro­xima de uma criança e com ela fala, conta estórias, canta canções, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repreende, ameaça, é um professor que lhe descreve este mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois que nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar.                                                                                                                                                     

Se  o corpo, como fato  biológico bruto, não é a fonte e nem o modelo para a criação dos mundos da cultura, permanece a pergunta: porque razão os homens fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo sólido e pronto da natureza para, à semelhança das aranhas, construírem teias para sobre elas viver? Para que plantar jardins? E as esculturas, os quadros, as sinfonias, os poemas?

 

E grandes e pequenos se dão as mãos, e brincam de roda, e empinam papagaios, e dançam e choram os seus mortos, e choram a si mesmos   nos seus mortos, e constroem altares, falam sobre a suprema  conquista  do  corpo, o triunfo final sobre a natureza, a imortalidade, a ressurreição da carne. 

E eu tenho de confessar que não sei dar resposta a estas perguntas.  Constato, simplesmente, que é assim. E tudo isto que o homem faz me revela um mistério antropológico. 

 Os animais sobrevivem pela adaptação física ao mundo. Os homens, ao contrário parece ser constitucionalmente desadaptados ao mundo, tal como ele lhes é dado.  Nossa tradição filosófica fez  seus sérios esforços  no   sentido de demonstrar que o homem é um  ser racional, ser de pensamento. Mas as produções culturais que saem de suas mãos sugerem, ao contrário, que o homem é um ser de desejo. 

Desejo é sintoma de privação de ausência. Não se tem saudade da bem-amada presente.
A saudade só aparecerá na distância, quando estiver longe  do carinho.  Também  não se tem fome — desejo supremo de sobrevivência física — com o estômago cheio. A fome só surge quando o corpo é privado do pão. Ela é teste­munho da ausência do alimento. E assim é, sempre, com o desejo. Desejo pertence aos seres que se sentem privados, que não encontram prazer naqui­lo que o espaço e o tempo presente lhes oferece. É compreensível, portanto, que a cultura não seja nunca a reduplicação da natureza. Porque o que a cultura deseja criar é exatamente o objeto desejado. A atividade humana, assim, não pode ser compreen­dida como uma simples luta pela sobrevivência que, uma vez resolvida, se dá ao luxo de produzir o supérfluo. 

A cultura não surge no lugar onde o homem domina a natureza. Também os moribundos balbu­ciam canções, e exilados e prisioneiros fabricam poemas.  Canções fúnebres exorcizarão a morte? Parece que não. Mas elas exorcizam o terror e lançam pelos espaços afora o gemido de protesto e a reti­cência de esperança. E os poemas do cativeiro não quebram as correntes e nem abrem as portas, mas, por razões que não entendemos bem, parece que os homens se alimentam deles e, no fio tênue da fala que os enuncia, surge de novo a voz do protesto e o brilho da esperança.

A sugestão  que  nos vem  da psicanálise é de que o homem faz cultura a fim de criar os objetos do seu desejo. O projeto inconsciente do ego, não importa o seu tempo e nem o seu lugar, é encontrar um mundo que possa ser amado. Há situações em que ele pode plantar jardins e colher flores. Há outras situações, entretanto, de impotência em que os objetos do seu amor só existem através da magia da imaginação e do poder milagroso da palavra. Juntam-se assim o amor, o desejo, a imaginação as mãos e os símbolos para criar um mundo que faça sentido, e esteja em harmonia com os valores do homem que o constrói, que seja espelho, espaço amigo.

Realização concreta dos objetos do desejo ou para fazer uso de uma terminologia que nos vem de Hegel, objetivação do Espírito. Teríamos então de nos perguntar que cultura é esta que ideal se realizou? Nenhuma. É possível discernir a intenção do ato cultural, mas parece que a realização  efetiva para sempre escapa àquilo que nos é concretamente possível.

A volta do jardim está sempre o deserto que, eventualmente, o devora; a ordo amoris (Scheller) esta cercada pelo caos; e o corpo que busca amor e prazer se defronta com a rejeição, a crueldade, a solidão, a injustiça, a prisão, a tortura, a dor, a morte. 

A cultura parece sofrer da mesma fraqueza que sofrem os rituais mágicos: reconhecemos a sua intenção, constatamos o seu fracasso e sobra apenas a  esperança de que, de alguma forma, algum dia, a realidade se harmonize com o desejo. E enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo, celebrá-lo, escrever-lhe poemas, compor-lhe sinfonias, anunciar-lhe cele­brações e festivais. E a realização da intenção da cultura se transfere então para a esfera dos símbolos.

Símbolos assemelham-se a horizontes. Hori­zontes: onde se encontram   eles? Quanto mais deles nos aproximamos, mais fogem de nós. E, no entanto, cercam-nos atrás, pelos lados, à frente. São o referencial  do nosso caminhar. Há sempre os horizontes da noite e os horizontes da madrugada. 

As esperanças do ato pelo qual os homens criaram a cultura, presentes no   seu próprio fracasso, são horizontes que nos indicam direções. E esta é a razão por que não podemos entender uma cultura quando nos detemos na contemplação dos seus triunfos técnicos/práticos. Porque é justamente no ponto onde ele fracassou que brota o símbolo, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que não nasceram.

 E é aqui que surge a religião, teia de símbolos, rede de desejos, confissão da espera, horizonte dos horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza. Não é composta de itens extraordinários. Há coisas a serem consideradas: altares, santuários, comidas, perfumes, lugares, capelas, templos, amuletos, colares, livros, e também gestos, como os silêncios, os olhares, rezas, encantações, renúncias, canções, poemas, romarias, procissões, peregrinações, exorcismos, milagres, celebrações, festas, adorações.

E teríamos de nos perguntar agora acerca das propriedades especiais   destas coisas e gestos, que fazem deles habitantes do mundo sagrado, enquanto outras coisas e outros gestos, sem aura ou poder, continuam a morar no mundo profano.

Há propriedades que, para se fazerem sentir e valer dependem exclusivamente de si mesmas. Por exemplo, antes que os homens existissem já brilhavam as estrelas, o sol aquecia, a chuva caia e  as plantas e bichos enchiam o  mundo. Tudo isto existiria e seria eficaz sem que o homem jamais tivesse existido, jamais pronunciado uma palavra, jamais feito um gesto. E é provável que continuaram, mesmo depois do  nosso  desaparecimento. Trata-se de realidades naturais, independe do desejo, da vontade, da atividade prática dos homens. Há também gestos que têm uma  eficácia em si mesmos. O dedo que puxa o gatilho, a mão que faz cair a bomba, os pés que fazem a bicicleta andar; ainda que o assassinado nada saiba e não ouça palavra alguma, ainda que aqueles sobre quem a bomba explode não recebam antes explicações, e ainda que não haja conversação  entre os pés e as rodas — não importa, os  gestos têm eficácia própria e são, praticamente habitantes do mundo da natureza.                                                                                             

Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, é encontrado já com as marcas do sagrado. O sagrado não é uma eficácia inerente às coisas. Ao contrário, coisas e gestos se tornam religiosos quando os homens os balizam como tais. A religião nasce com o poder que os homens têm de dar nomes às coisas, fazendo uma discriminação entre coisas de importância secundária e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta é a razão por que, fazendo uma abstração dos sentimentos e experiências pessoais que acom­panham o encontro com o sagrado, a religião se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de símbolos. Com estes símbolos os homens discriminam objetos, tempos e espaços, construindo, com o seu auxílio, uma abóbada sagrada com que recobrem o seu mundo. Por quê? Talvez porque, sem ela, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus símbolos sagrados o homem exorciza o medo e constrói diques contra o caos.

E, assim, coisas inertes — pedras, plantas, fon­tes — e gestos, em si vulgares, passam a ser os sinais visíveis desta teia invisível de significações, que vem a existir pelo poder humano de dar nomes às coisas, atribuindo-lhes um valor. Não foi sem razão que nos referimos à religião como "a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza".
De fato, objetos e gestos, em si insensíveis e indiferentes ao destino humano, são magicamente a ele integrados. Camus  observou que é curioso que   ninguém esteja disposto a morrer por verdades cientificas. Que diferença faz se o sol gira em torno da Terra, se a Terra gira em torno do sol? É que as verdades científicas se referem aos  objetos na a  mais radical e deliberada indiferença a vida, morte à felicidade e infelicidade das pessoas. Há verdades  que são  frias e  inertes. Nelas não se dependura o nosso destino. 

Quando, ao contrario, tocamos nos símbolos em que nos dependuramos, o corpo inteiro estremece. E este estremecer é a marca emocional/existencial da experiência do sagrado.

 Sobre que fala a linguagem, religiosa?

 Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas concretas e visíveis. Assim, discutimos pessoas, contas, custo de vida, atos dos políticos, golpes de Estado e nossa última crise de reumatismo. Quando entramos no mundo sagrado, entretanto descobrimos que uma transformação se processou. Porque agora a linguagem se refere às coisas invisíveis, coisas para além dos nossos sentidos comuns que, segundo a explicação, somente os olhos da fé podem contemplar. O zen-budismo chega mesmo a dizer que a experiência da iluminação religiosa, satori, é um terceiro olho que se abre para ver coisas que os outros dois não podiam ver.

O sagrado se instaura graças ao poder do invisível.                                                                          

E é ao invisível que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus, o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as bem-aventuranças eternas e o próprio Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entidades? 

Uma pedra não é imaginária. Visível, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas no momento em que alguém lhe dá o nome de altar, ela passa a ser circundada  de uma aura  misteriosa, e os olhos da fé podem vislumbrar conexões invisíveis que a ligam ao mundo da graça divina. E ali se fazem orações e se oferecem sacrifícios.

Pão, como qualquer pão, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser   usados  numa   refeição  ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles não sobe nenhum odor sagrado. E as palavras são pronunciadas: "Este é o meu  corpo, este é o meu sangue. . ." — e os objetos visíveis adquirem uma dimensão nova, e passam a ser sinais de reali­dades invisíveis.

Temo que minha explicação possa ser convin­cente para os religiosos, mas muito fraca para os que nunca se defrontaram com o sagrado. É difícil compreender o que significa este poder do invisível, a que me refiro. Peço, então, licença para me valer de uma parábola, tirada da obra de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe. O príncipe encontrou-se com um bichinho que nunca havia visto antes, uma raposa. E a lhe disse:

·         "Você quer me cativar?"

·         "Que é isto?", perguntou o menino.

·         "Cativar é assim: eu me assento aqui, você se assenta lá, bem longe. Amanhã a gente se assenta mais perto. E assim, aos poucos, cada vez mais perto".

E o tempo passou, o principezinho cativou a raposa e chegou a hora da partida.

·         "Eu vou chorar", disse a raposa.

·         "Não é minha culpa", desculpou-se a criança. "Eu lhe disse, eu não queria cativá-la. .. Não valeu a pena. Você percebe? Agora, você vai chorar!"

·         "Valeu a pena sim", respondeu a raposa. "Quer saber por quê? Sou uma raposa. Não como trigo. Só como galinhas. O trigo não significa absolu­tamente nada, para mim. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. E agora, na sua ausência, quando o vento fizer balançar o campo de trigo, eu ficarei feliz, pensando em você".

E o trigo, dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausência, que fazia a raposa sorrir. Parece-me que esta parábola apresenta, de forma paradigmática, aquilo que o discurso religioso pretende fazer com as coisas: transformá-las, de entidades brutas e vazias, em portadoras de sentido, de tal maneira que elas passem a fazer parte do mundo humano, como se fossem extensões de nós mesmos.                                                                                                                                         

E poderíamos ir multiplicando os exemplos, sem fim, relatando a  transformação das coisas profanas em coisas sagradas na medida em que  são envolvidas pelos nomes do invisível.

Mas é necessário prestar atenção às diferenças. Acontece que o discurso religioso não vive em si mesmo. Falta-lhe a autonomia das coisas da natureza, que continuam as mesmas, em qualquer lugar. A religião é construída pelos símbolos que os homens usam. Mas os homens  são diferentes. E seus mundos sagrados. "O mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein). Assim, há aqueles que fazem amizade com a natureza, e reconhecem de que dela recebem a vida. E eles envolvem então, com o diáfano véu do invisível, os ventos e as nuvens, os rios e as estrelas, os animais e as plantas, lugares  sacramentais. E por isso mesmo pedem perdão aos animais que vão ser mortos, e aos galhos que serão quebrados, e a mãe terra que é escavada, e protegem as fontes de seus excrementos, há também os companheiros da força e da vitória, que abençoam as espadas, as correntes, os exércitos e o seu próprio riso. 

Há os sofredores que transformam os gemidos dos oprimidos em salmos, as espadas em arados, as lanças em podadeiras e constroem, simbolicamente, as utopias da paz e da justiça eterna, em que o lobo vive com o cordeiro e a criança brinca com a serpente.

Que estranho discurso!

Bem que teríamos de nos perguntar acerca do poder mágico que permite   que os homens falem acerca daquilo que nunca viram. . .E a resposta é que, para a religião, não importam os fatos e as presenças que os sentidos   podem  agarrar. Importam os objetos que a fantasia e a imaginação podem construir. 

Fatos  não são valores: presenças que não valem o amor. O amor se dirige para coisas que ainda irão nascer, ausentes. Vive do desejo e da espera. E é justamente aí que surgem a imagi­nação e a fantasia, "encantações destinadas  a produzir. . . a coisa que se deseja. . ."   (Sartre). 

Concluímos, assim, com honestidade, que as entidades religiosas são entidades imaginárias.

Sei que tal afirmação parece sacrílega. Especialmente para as pessoas que já se encontraram com o sagrado. De fato, aprendemos desde muito cedo a identificar a imaginação com aquilo que é falso. Afirmar que o testemunho de alguém é produto da imaginação e da fantasia, é acusá-la de pertur­bação   mental ou suspeitar de sua integridade moral.  Parece que a imaginação é um engano que tem de ser erradicado. De maneira especial àqueles que devem sobreviver nos labirintos insti­tucionais, sutilezas linguísticas e ocasiões rituais do mundo acadêmico, é de importância básica que o seu discurso seja assepticamente desinfetado de quaisquer resíduos da imaginação e da observação! 

Que os fatos sejam valores! Que o objeto triunfe sobre o desejo! Todos sabem, neste mundo da ciência, que a imaginação conspira contra a objetividade e a verdade. Como poderia alguém, comprometido com o saber, entregar-se à embriaguez do desejo e suas produções?

Não, não estou dizendo que a religião é apenas imaginação, apenas fantasia. 

Ao contrário, estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a digni­dade do imaginário. Mas, para elucidar declaração tão estapafúrdia, teríamos de dar um passo, ir até lá onde a cultura nasceu e continua a nascer. Por que razões os homens fizeram flautas, inventaram danças, escreveram poemas, puseram adores nos seus cabelos e colares nos seus pescoços, construíram casas, pintaram-nas de cores alegres e puseram quadros nas paredes? Imaginemos que estes homens tivessem sido totalmente objetivos, totalmente dominados pelos fatos, total­mente verdadeiros — sim, verdadeiros! — poderiam eles ter inventado coisas? Onde estava a flauta antes de ser inventada? E o jardim? E as danças? E os quadros? Ausentes. Inexistentes. Nenhum conhecimento poderia jamais arrancá-los da natureza. Foi necessário que a imaginação grávida para que o mundo da cultura nascesse. Portanto, ao afirmar que as entidades da religião pertencem ao imaginário, não as estou colocando ao lado do engodo e da perturbação. Estou  apenas estabelecendo sua filiação e reconhecendo a fraternidade que nos une. 

Começamos falando dos animais, de como eles sobrevivem, a adaptação dos seus corpos ao ambiente, a adaptação do ambiente aos seus corpos. Passamos então ao homem, que não sobrevive por meio de artifícios de adaptação física, pois ele cria a cultura e, com ela, as redes simbólicas da religião.

 E o leitor teria agora todo o direito de nos perguntar: "Mas, e estas redes simbólicas? Sabemos que são belas e possuem uma função estética. Sabemos que delas se derivam festivais e celebrações, o que estabelece o  seu parentesco com as atividades lúdicas. Mas, além disto, para que servem? Que uso lhes dão os homens? Serão apenas ornamentos supérfluos? A sobrevivência depende de coisas e atividades práticas, materiais, como ferramentas, armas, comida, trabalho. Poderão os símbolos, entidades tão débeis e diáfanas, nascidas da imaginação,  competir  com a eficácia  daquilo que é material e concreto?"

Sobrevivência tem a ver com a ordem. Observe os animais. Nada fazem a esmo. Não há impro­visações. Por séculos e milênios seu comporta­mento tem desenhado os mesmos padrões. Quando, por uma razão qualquer, esta ordem inscrita nos seus organismos entra em colapso, o comportamento perde a unidade e direção.

E a vida se vai.

 Cada animal tem uma ordem que lhe é espe­cífica. Beija-flores não sobrevivem da mesma forma que besouros. E foi pensando nisto que o biólogo Johannes von Uexküll teve uma idéia fascinante. O que nos parece óbvio é que o ambiente em que vivem os animais é uma reali­dade uniforme, a mesma para todos e quaisquer organismos, uma espécie de mar em que cada um se arranja como pode. Uexküll teve a coragem de se perguntar: "Será assim para os animais? Moscas, borboletas, lesmas, cavalos marinhos viverão num mesmo mundo?" E poderíamos imaginar o ambiente como se fosse um grande órgão, adormecido, e cada organismo um orga­nista que faz brotar do instrumento a sua melodia específica. Assim, não existiria um ambiente, em si mesmo. O que existe, para o animal, é aquele mundo, criado à sua imagem e semelhança, que resulta da atividade do corpo sobre aquilo que está ao seu redor. Cada animal é uma melodia que, ao se fazer soar, faz com que tudo ao seu redor reverbere, com as mesmas notas harmônicas e a mesma linha sonora.

A analogia não serve de todo, porque sabemos que os homens não são governados por seus orga­nismos. Suas músicas não são biológicas, mas  culturais. Mas, da mesma forma como o animal lança sobre o mundo, como se fosse uma rede, a ordem que lhe sai do organismo, em busca de  um  mundo à  sua  imagem e semelhança; da mesma   forma   como   ele  faz  soar  sua melodia e, ao fazê-lo, desperta, no mundo ao seu redor, os sons que lhe são harmônicos, também o homem lança,  projeta,  externaliza suas  redes simbólico-religiosas   —  suas   melodias — sobre o  universo inteiro,   os  confins  do  tempo e os confins do espaço,  na esperança de que céus e terra sejam portadores de seus valores. 

O que está em jogo é a ordem. Mas não é qualquer ordem que atende às  exigências humanas. O que se busca, como esperança e utopia, como  projeto inconsciente do ego, é  um mundo que traga as marcas do desejo e que corresponda às aspirações do amor. Mas o fato é que tal realidade não existe como algo presente. E a religião aparece como a grande hipótese e aposta de que o universo inteiro possui uma face humana. Que ciência poderia construir tal horizonte? São necessárias as asas da imagi­nação para articular os  símbolos da ausência. E o homem diz a religião, este universo simbólico, "que proclama que toda a realidade é portadora de um sentido humano e invoca o cosmos inteiro para significar a validade da existência humana" (Berger& Luckmann).

Com isto os homens não poderão arar o solo, gerar filhos ou mover máquinas. Os símbolos não possuem tal tipo de eficácia. Mas eles respon­dem a um outro tipo de necessidade, tão poderosa quanto o sexo e a fome: a necessidade de viver num mundo que faça sentido. Quando os esque­mas de sentido entram em colapso, ingressamos no mundo da loucura. Bem dizia Camus que o único problema filosófico realmente sério   é o problema   do   suicídio,  pois  que ele  tem a  ver com a questão de se a vida é digna ou não de ser vivida. E o problema não é material, mas simbó­lico. Não é a dor que desintegra a personalidade, mas a dissolução dos esquemas de sentido. Esta tem sido uma trágica conclusão das salas de tor­tura. É verdade que os homens não vivem só de pão. Vivem   também de símbolos,  porque sem eles não haveria ordem, nem  sentido para a vida, e nem vontade de viver. Se pudermos concordar com a afirmação de que aqueles que habitam um mundo ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem interna, integração, unidade, direção e se sentem efetivamente mais fortes para viver (Durkheim), teremos então descoberto a efetividade e o poder dos símbolos  e vislumbrado a  maneira pela qual a imaginação tem contribuído para a sobrevivência dos homens.

 

Rubens A. Alves