Palavrão é fogo

Alguns andares abaixo da minha varanda ficam as quadras poliesportivas do condomínio. Não importa quem esteja jogando, ou qual o esporte praticado, quase sempre que a raquete, o pé ou a mão entram em contato com a bola, rola um palavrão.

 

Ele tanto serve para indicar que a bola entrou quanto que a bola saiu, ou que haja dúvidas sobre a bola ter entrado ou saído. Parece haver mais ênfase no palavrão em si do que no chute, no arremesso ou na raquetada. Um desavisado seria levado a crer que ganha a partida quem gritar mais impropérios.

 

As quadras aqui embaixo não são um mundo à parte. Palavrão virou vírgula, exclamação, dois pontos, ponto parágrafo, travessão e reticências. Só não se transformou em hífen porque, com o Acordo Ortográfico, ninguém mais sabe onde tem hífen ou não.

 

Deixou de ser transgressão para se tornar tendência, mais ou menos como a tatuagem. O que é uma pena, porque o palavrão tem função social e utilidade pública: é catártico, terapêutico, libertador. Pouca coisa libera mais endorfina no organismo que um palavrão com as sílabas minuciosamente articuladas, descendo redondo do sistema límbico até a língua, sem escalas na salinha do superego.

 

É um baita desperdício desviar o baixo calão de suas nobres funções para fazê-lo coadjuvante na conversa fiada de cada dia. Sua força, seu poder simbólico, vem da nossa capacidade de ser profanos, e quando a profanidade vira regra o palavrão se banaliza, perde a potência. Sua pancada perde o impacto, sua lâmina perde o fio.

 

O grande prejuízo de se xingar a torto e a direito não é só o esvaziamento semântico, mas o empobrecimento da linguagem, já que o palavrão não tem esse nome à toa: ele vale mais que mil palavras. Substituídas sem cerimônia por seus equivalentes chulos, as interjeições correm o risco de vir a se tornar uma classe gramatical em extinção. “Puxa!”, “nossa!” e, principalmente, “caramba!” devem entrar na lista de expressões a ser protegidas por algum Ibama linguístico — que também terá que se encarregar dos advérbios de intensidade. Lembrando que “puxa” e “caramba” foram criadas justamente para poupar o palavrão do desgaste: são laranjas de palavras mais pesadas, domesticadas para o uso diário. Pode ser que, esgotado o uso metafórico dos nomes dos órgãos genitais, de uma profissão antiquíssima e dos fluidos seminais, se volte a exclamar “cacilda!” e “pombas!”, como no tempo dos nossos avós. Mas há coisas que só um palavrão de verdade, sonoramente escatológico, dito na hora certa, com as vogais bem arregaladas, faz por você.

 

Porque palavrão tem poder. Ele incrementa o prazer, reduz o estresse, amortece a dor. Nasceu para ser o camarão do vatapá, as duas gotas de Chanel Nº5 no cangote, o ressoar dos pratos acordando a plateia no clímax da sinfonia. Não é justo que vire arroz com feijão, banho de colônia barata, batida de funk.

 

Ele vai do carnal nos poemas de Bocage e Gregório de Matos ao sublime nos de Drummond e Hilda Hilst. Dá tempero à prosa de Jorge Amado, de Dalton Trevisan. Está ali porque é insubstituível. Álvaro de Campos não estaria se revoltando de verdade num comício dentro da sua alma se tivesse escrito “Meleca! Sou lúcido”.

Pelo menos ninguém mais o chama de “nome feio” (nome feio é “fronha”, que não se tem notícia de ter sido algum dia usado como ofensa). Com raras exceções, o palavrão é bonito, soa bem, faz carícia no ouvido. O único realmente feio é “fedazunha”, que talvez por isso não tenha saído do interior de Minas e ganho o mundo, os estádios, as conversas de bar, os debates políticos.

 

Se mudam os tabus, é inevitável que os palavrões acabem mudando junto. Mas seria bom ter à mão substitutos à altura, antes que, desmoralizados, percam a capacidade de chocar.

 

Dercy Gonçalves ficaria encabulada diante da moça empoderada discutindo a relação ao celular no metrô, da roda de pré-adolescentes no shopping, ou aqui na varanda, ouvindo palavrões cabeludos serem rebaixados a palavrinhas quaisquer, a troco de um saque ou de um pontapé. Palavrão merece respeito.

Use com moderação.

 

Baita desperdício desviar o baixo calão de suas nobres funções para fazê-lo coadjuvante na conversa fiada de cada dia.

 

Eduardo Affonso

 

Publicado originalmente no jornal “O Globo”