Qual a moral contemporânea?

 

Nos tempos de hoje, os paradigmas e as visões de mundo propostas pelos estudiosos, os sábios, estão todas sendo problematizadas. Não chegando a uma resposta satisfatória, os filósofos gregos antigos são relidos, tantas e tantas outras vezes, num retorno às origens dos fundamentos idealistas.

 

Não há mais espaço para utopias. Agora, a resposta a pergunta 'o que é uma vida boa?' não é mais buscada em um gabarito que se aplique a todos os seres humanos. Doravante, são referidos como indivíduos, sujeitos ou pessoas.

 

No ocidente, em particular, temos a dissolução da família tradicional como núcleo de integração e de identificação dos sujeitos. Não mais se afirma, como determinante de identificação, que um tal sujeito pertence a uma dada família. Em seu lugar se apresenta, como identificação, a citação das organizações e instituições das quais participa.

 

Sendo o sujeito participante de várias organizações, ele não mais possui uma única resposta para o que é bom e para o que é certo. Agora, o que é certo ou bom, depende dos interesses de cada uma dessas organizações.

 

Sendo, por exemplo, um sujeito torcedor do Cruzeiro Futebol Clube o bom, para ele, é que esta associação esportiva seja vencedora, seja campeã, mesmo que as suas vitórias tragam dor e sofrimento para os torcedores das associações concorrentes. Neste sentido, a fraternidade existe, apenas, entre os torcedores de uma mesma organização. Portanto, não existindo espaço para uma fraternidade universal.

 

Por outro lado, torcedores do Cruzeiro, também participam independentemente de outras organizações, até mesmo concorrentes, em outros áreas de atuação. Em cada uma destas pertinências eles podem não serem mais fraternos.

 

Por exemplo, um torcedor cruzeirense pode fazer parte de uma quadrilha que falseia licitações públicas, enquanto outro pode fazer parte de uma instituição policial encarregada de combater este tipo de crime.

 

O que se pode constatar é a existência, em um mesmo sujeito, de múltiplas respostas para o que é bom e o que é certo... várias morais. Ou seja, ele possui múltiplas respostas para a questão 'o que é uma vida boa?'. Ou, se for aceita uma resposta generalizante, a moral de hoje consiste em fazer o que for bom para um determinando grupo que o sujeito faça parte. E como ele faz parte de vários grupos... observa várias morais.

 

Se a moral fosse representada pela roupa que o sujeito se veste, poderíamos dizer que ele se veste da roupa apropriada ao local em que ele se encontra e toma parte.

 

Utilizando outras palavras poderemos também apresentar esta visão da multiplicidade das formas como um mesmo sujeito se apresenta, de um modo, digamos, mais familiar. Isto consiste em afirmar que cada pessoa desempenha voluntariamente, ou é chamada a desempenhar, vários papeis. Assumindo várias personagens ao longo de sua vida, diacronicamente e sincronicamente.

 

É como se fosse um ator. Um ator que trabalha, simultaneamente, em várias peças teatrais. E que, também, vai assumindo novos papeis e descartando outros, mais antigos.

 

Por assim ser, é que ouvimos afirmativas tais como: "fiz muitas vezes isto na minha juventude, eu era muito inexperiente, muito audacioso. Hoje não faço mais, não acho certo". O não acho certo, como estamos insistindo neste artigo, é outra forma de afirmar que não acha bom.

 

É possível, também, fazermos uma analogia com um celular multimídia - por exemplo, um iPlone - e os aplicativos existentes na sua memória. O celular pode operar dois ou mais aplicativos simultaneamente. Em verdade, em paralelo, mais passa a impressão que é simultâneo, tão rápido é o seu processamento. Nesta analogia o sujeito opera cada aplicativo na medida em que é chamado pela sua pertinência à situação em que ele se encontra.

 

Se o sujeito, por exemplo, está em um estádio de futebol, e, sendo torcedor, assume o máximo de parcialidade; se é o juiz da partida, busca o máximo de imparcialidade.

 

É interessante notar que até a linguagem do sujeito muda a cada papel desempenhado, a cada personagem assumida. Cada personagem exige uma linguagem específica e, até mesmo, um modo de falar, um sotaque.

 

Entre os pesquisadores universitários podemos observar até a ausência do sujeito no discurso utilizado na divulgação dos resultados obtidos no trabalho científico. No discurso não é o sujeito que observa, que consta, que verifica. Mas o próprio objeto da pesquisa é quem fala, de modo que a forma utilizada é: observa-se, constata-se, verifica-se....

 

O sujeito se faz ausente e quem fala é o objeto, e, com isso, carimba-se o discurso como objetivo, do objeto. Ao contrário do discurso subjetivo, do sujeito, que passa a ser utilizado em casa, quando informa a um familiar que foi feita uma descoberta no laboratório no qual trabalha: eu observei, eu constatei, eu verifiquei...

 

Há ainda, em muitas equipes de trabalho, o abandono definitivo em descobrir a verdade. Não mais se busca encontrar a relação exata existente entre duas variáveis associadas a um dado objeto de estudo, mas a correlação entre elas, o quanto a ocorrência de uma pode está associada à ocorrência da outra. O que se busca é quantizar a pertinência das variáveis ao objeto de estudo.

 

É até mesmo emblemático o uso da palavra VARIÁVEL para designar o que se observa. Por exemplo, temperatura, pressão, umidade, volume...

 

Cada vez mais há uma troca da Matemática pela Estatística na descrição do objeto observado. Como sabemos a Matemática está associada aos modelos ideais, está associada ao absoluto. Enquanto que a Estatística está associada à realidade aleatória dos objetos em estudo.

 

Cada vez mais há uma constatação de que no universo o que prevalece é o caos. E que o cosmo é invenção humana, nunca divina. Claro, no caos o que se observa como objeto de estudo é uma delimitação humana. Daí, os resultados obtidos serem de natureza transitória, relativas às delimitações, nunca absolutos. O absoluto só existe no plano mental, nunca no material.

 

Por fim, na contemporaneidade não faz mais sentido em se falar na existência de uma moral observada universalmente, na existência de uma fraternidade universal. Mas, tão somente, na constatação de que o ser humano se apresenta cada vez mais como um mutante. Sendo a moral absoluta, válida para todos, nada mais do que um desejo, um sonho, decorrente das crenças e das religiões. Sendo um sonho tão realizável quanto um acordo solidário, uma convergência harmoniosa e livre, para uma religião única e eterna.

* Hiran de Melo
Originalmente publicado em: 
  https://hiranmelo.blogspot.com.br/2014/12/qual-moral-contemporanea.html