Qual o sentido da vida?


Um filósofo não responde a uma pergunta sem antes examinar seus pressupostos. É por isso que a busca pelo fim último de nossa existência, ou pelo sentido da vida, vai se mostrar objeto dos mais variados debates na filosofia, às vezes contornando a questão por identificar que ela se origina unicamente devido ao modo de operar de nossa razão.

A experiência cotidiana nos ensina que toda causa tem um efeito, e quando voltamos este princípio de causação para nós mesmos, buscamos identificar não apenas nossa causa material – como viemos a existir e possuir um corpo -, mas também a causa final, a razão de estarmos aqui. Enquanto seres humanos, tentamos encontrar padrões e finalidade em todas as nossas atividades, de modo que sempre que criamos um objeto, por exemplo, o fazemos tendo em vista algum propósito, tal como um lápis a fim de escrever e uma panela para cozinhar. Consideramos então, por analogia, que caso sejamos artefatos de um Criador, Ele deve ter nos criado tendo algum plano em mente, de modo que surge a questão: se existe mesmo um Deus, com qual propósito Ele nos criou?

Este é um interessante caminho de investigação, mas a filosofia não se contenta com respostas religiosas. Não vamos tentar responder à pergunta pressupondo que Deus existe, mas vamos dar um passo atrás e questionar a própria existência de Deus, tendo em vista que nossa investigação pode tomar rumos bem diferentes dependendo da resposta a esta primeira questão. E mesmo que a nossa conclusão seja a de que Deus existe, restaria ainda o problema de tentar encontrar um método seguro – racional e não religioso - para descobrir qual a sua intenção ao criar o ser humano. A busca pelo sentido da vida apresentará dificuldades diferentes, no entanto, se nosso ponto de partida for o ateísmo, a visão de mundo naturalista segundo a qual tudo o que existe é pura matéria. Qual seria o sentido da vida se não existe um Deus?

Aqueles que acreditam em Deus afirmam que a existência de uma divindade criadora dá sentido à existência humana, tanto agora quanto após a morte. Vários crentes afirmam que se não acreditassem em Deus, não teriam motivo nem mesmo para deixar a cama ao acordar. Os ateus, no entanto, não possuem o conforto de um Deus ao qual possam recorrer. Enquanto naturalistas, acreditam que a condição humana não possui um sentido intrínseco ou abrangente, de modo que lhes restaria encontrar outros tipos de sentido ou significado mais compatíveis com sua visão de mundo. Se aquele clássico problema filosófico do mal é uma grande questão à qual os teístas devem responder, o ônus parece se inverter quando a discussão é sobre o sentido da vida.

Vale a pena viver?

O filósofo existencialista Albert Camus (1913-1960) afirma em O mito de Sísifo que só existe um problema filosófico, e este é o suicídio. A questão é saber se a vida vale a pena ser vivida ou não, de modo que tudo o mais na filosofia é secundário:

“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências que são sensíveis para o coração, mas que é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência.” (Albert Camus, O mito de Sísifo)

Na mitologia grega, Sísifo foi rei de Corinto, um enganador e rebelde contra os deuses. Como punição por desafiar as divindades, recebeu uma condenação engenhosa: ao invés de torturas sem fim ou o fogo do inferno, como na tradição cristã, ele foi sentenciado apenas a uma atividade extremamente fútil e sem sentido, que consistia em rolar uma pedra até o alto de uma montanha, a qual então rolava para baixo novamente, exigindo recomeçar todo o processo. Esta foi a condenação de Sísifo por toda a eternidade.

Camus utilizou o mito de Sísifo como exemplo da condição humana. Se não há um objetivo final para nossa existência, se ela é apenas um amontoado de tarefas uma atrás da outra, então nossa vida é exatamente como a de Sísifo. Inclusive Camus o relaciona ao trabalhador de hoje e afirma:

“O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce.” (Albert Camus, O mito de Sísifo)
Esta é a situação da maioria de nós. Todos os dias vamos para a escola ou para o trabalho, temos nossas tarefas domésticas, os cuidados com o corpo, a alimentação, o descanso e o sono. Levantamos no dia seguinte para repetir as mesmas coisas, e de tempos em tempos nos permitimos alguma variação, como um período de férias e alguma atividade que também se repete, mas com menos frequência. No final de contas somos todos Sísifo, e a reflexão sobre nossa condição – o momento em que descemos a montanha para buscar a pedra lá em baixo novamente – pode nos levar ao desespero.

Mas a pergunta faz sentido?

Uma lição básica da filosofia é examinar as próprias perguntas que nos são colocadas. No caso em questão, devemos não simplesmente nos lançar cegamente em uma busca pelo sentido da vida, mas devemos parar por um momento e questionar se de fato há algum sentido a ser buscado. Este aspecto da discussão foi apresentado de maneira divertida na obra de ficção O guia do mochileiro das galáxias.

Em um outro planeta, alguns filósofos galácticos desenvolveram um megacomputador chamado Deep Thought.  Um de seus objetivos era descobrir qual o sentido da vida, do universo e de tudo mais, e depois de sete milhões e meio de anos o computador anunciou que encontrou a resposta. A notícia provocou grande êxtase, pois ninguém mais acordaria de manhã fazendo perguntas do tipo “quem sou eu?” ou  “qual o meu propósito na vida?”. Deep Thought então finalmente deu a resposta para o sentido da vida: “Quarenta e dois. Quarenta e dois!”.

Todos ficaram desapontados, e questionaram por que ele demorou milhões de anos para chegar a esta resposta. O computador então respondeu: “Eu acho que o problema, para ser bem honesto, é que vocês na verdade nunca souberam qual a pergunta ... assim que vocês descobrirem a questão, então vocês saberão o que a resposta significa.”

Esta parábola aponta para dois aspectos do problema. O primeiro diz respeito a uma forma de simplesmente descartar a questão sobre o sentido (ou significado, meaning) como algo em si mesmo sem nenhum sentido. É isso o que faz a filosofia da linguagem, por exemplo, ao afirmar que sentido é uma função de proposições (statements), não de existência. Podemos perguntar pelo significado da frase “a vida tem sentido”, mas perguntar se a própria vida tem sentido é um erro categorial.

Há outras maneiras de descartar a questão, como fez também Freud. O pai da psicanálise afirmou que a partir do momento que uma pessoa se pergunta pelo significado e pelo valor da vida, ela está doente. Tais questões, segundo Freud, são uma indicação de uma libido insatisfeita, uma fermentação psíquica que leva à tristeza e à depressão, de modo que aqui o foco passa da mensagem para o mensageiro, da pergunta para o indivíduo que a expressa.

Tais estratégias, no entanto, não soam satisfatórias. O que geralmente se quer saber quando se pergunta pelo sentido da vida é mais ou menos o que Gauguin colocou em uma de suas pinturas: “De onde eu venho? O que nós somos? Para onde estamos indo?’. O que as pessoas querem saber quando indagam pelo “sentido” ou pelo “significado” da vida é algo como “razão”, “importância” ou “propósito”, denotando também algo como um senso de direção, um telos, ou destino, ao invés de um simples vagar sem rumo.

Sem Deus, sem sentido

Alguns cristãos dirão que se Deus não existe, então não há um sentido último ou um plano geral no universo. E sem plano, não há também direção, e sem direção, não há tampouco significado para qualquer coisa que os humanos saibam ou façam. Tudo é absolutamente sem sentido. Sem Deus, a vida não pode ter um sentido objetivo.

O problema desta argumentação é que ela confunde um sentido último com um objetivo. Os termos “último” e “objetivo” não são sinônimos. Se o adjetivo “objetivo” é compreendido como “intrínseco”, então o argumento se torna mais forte, embora o ateu não concorde com isso. É possível que algo seja objetivo mesmo que não baseado em Deus, tais como os valores morais baseados em uma avaliação natural da natureza humana e de critérios sociais por justiça e felicidade. Objetividade é uma função da razão, não de significado (meaning) intrínseco.

Outro ponto é que mesmo que a existência de uma divindade dê sentido ou propósito à existência, isso não quer dizer que tal sentido seja inteligível aos humanos. Se Deus é incompreensível aos humanos, como ele poderia ser a explicação última da razão de estarmos aqui ou a justificação última de nossa existência? Dizer que existe uma explicação além de toda capacidade de compreensão humana não é consolo algum para quem busca respostas.

Devemos também ressaltar que não é claro por qual razão um determinado sentido dado por Deus ao universo automaticamente daria sentido também às nossas vidas. E se o sentido do universo nos for coercitivo, autoritário ou desagradável?

Outra questão que devemos responder sobre a posição cristã é sua afirmação de que não é possível criar significado ou sentido a partir de uma situação randômica, sem padrão. A experiência cotidiana, ao contrário, nos mostra que escritores criam grandes obras e romances ao manipular letras aleatórias e palavras, assim como músicos criam música manipulado notas e acordes. Mesmo que o universo fosse apenas um amontado de eventos aleatórios, poderíamos criar sentido a partir dele.

Fontes de significado

Ao tentar trazer Deus para a discussão sobre o sentido da vida, percebemos que talvez a própria questão em si já seja muito ambiciosa. Talvez a resposta para o sentido da vida deva ser buscada em pequenos passos, e ao invés de falarmos de um único sentido para a vida, devêssemos falar de vários sentidos.

Se Deus não é garantia alguma de sentido, de onde busca-lo, então? Como salvar Sísifo? Alguns ateus afirmam que quanto mais o universo se torna compreensível, mais ele parece sem propósito. A saída seria focar nas necessidades humanas mais básicas e trabalhar para alcança-las, levando em conta a dura realidade da vida e extraindo delas as possibilidades.

Uma das primeiras condições seria a habilidade de estabelecer objetivos e efetivá-los. O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirmava que a existência de um Deus designer escraviza as pessoas a uma essência pré-determinada. Assim como um apontador de lápis é projetado para uma função muito específica, também os humanos, se fossem projetados por Deus, estariam limitados por um projeto, por uma determinada concepção divina. Sartre afirma que, felizmente, Deus não existe e que, por esta razão, não somos artefatos que devem servir a algum propósito. Em sua famosa formulação na obra O existencialismo é um humanismo, ele afirma que “a existência precede a essência”, no sentido de que primeiro o homem existe, está no mundo, e só depois é que se define, que descobre o que é.

“O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la.” (Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo).
Uma possível objeção a esta liberdade defendida por Sartre vem não da crença em um criador do universo, mas do próprio ateísmo. Se a natureza é tudo o que existe, e se tudo obedece a leis naturais deterministas, então os humanos não são mais que matéria, exatamente como qualquer inseto. Neste cenário ainda faria sentido falar em um ordenador, mas ele seria a natureza ao invés de Deus.

Se tudo é determinado pela matéria, se tudo é uma enorme cadeia de causa e efeito, então não há livre arbítrio e nem responsabilidade moral. Podemos até nos sentir livres, mas isso é apenas uma ilusão, ou o lado subjetivo da questão.

O senso de autonomia, no entanto, é importante para outros aspectos de uma vida com significado. Não se descobre o “sentido da vida” em um momento de grande revelação, mas em momentos nos quais diversos elementos se encontram de tal maneira a nos ajudar a compreender nossas histórias pessoais e coletivas. Estes momentos acontecem em empreendimentos criativos, na apreciação do belo e na euforia da descoberta.

A arte, especialmente a narrativa, é uma importante fonte de sentido. Grandes romances ou epopeias nos ajudam a refletir sobre nossas histórias pessoais e a compreender que, não obstante suas particularidades, elas são paradigmáticas da situação humana. Esta análise do significado lembra a famosa afirmação de John Stuart Mill de que é melhor ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito. Podemos compreender esta frase também no sentido de que uma das vantagens de um Sócrates insatisfeito é que ele é capaz de compreender ou mesmo criar significado para a vida.

Ao tentar encontrar o sentido da vida nas pequenas coisas, todavia, não podemos confundir duas coisas importantes: significado e felicidade. Não se pode reduzir uma sensação de bem-estar, decorrente da satisfação de nossas necessidades, com o próprio sentido da vida.

Se considerarmos que criatividade, amor e serviço à humanidade podem ser fontes de sentido, fica claro que que uma vida pode ter significado e mesmo assim ser infeliz. Há também o risco de este significado endógeno se tornar um mero subjetivismo no qual tudo é válido, de modo que um estilo de vida baseado no consumo de drogas ou no sadismo seria tão válido quanto qualquer outro.

De que adianta tudo isso se vamos morrer?

Outra dificuldade de se tentar encontrar o sentido da vida na ausência de Deus é a natureza efêmera da vida. Uma coisa é tentar encontrar sentido e bem-estar nas pequenas coisas, focar no presente ao invés de ser prisioneiro do passado ou se angustiar inutilmente com o futuro. Outra bem diferente, no entanto, é saber que tudo isso tem inevitavelmente um fim com a morte.

De que adianta toda a beleza do mundo, conquistas gloriosas e tantos relacionamentos amorosos e se eles terminam na aniquilação total? A falta de propósito que sentimos diante da inevitabilidade da morte pode zombar da existência mais feliz e mais frutífera.

Um crente em Deus pode se consolar com a doutrina da vida eterna, mas isso não é uma opção para o ateu. Este tem que dar boas respostas à questão da mortalidade se quiser defender um sentido para a vida em uma perspectiva naturalista, pois de outro modo, sua situação é aquela de Sísifo rolando a pedra montanha acima, por toda a eternidade. Todas as conquistas humanas são fúteis, a exemplo do que afirma o pregador no livro bíblico de Eclesiastes:

2 Que grande ilusão! Que grande inutilidade! Nada faz sentido!”, diz o sábio.

3 Que vantagem tem o ser humano em todo o seu trabalho, em que tanto se dedica debaixo do sol?

4 Gerações nascem e gerações morrem, mas a terra permanece sempre do mesmo jeito.

5 O sol se levanta no horizonte e ao fim do dia se põe, e depressa volta ao lugar de onde se levanta para um novo dia.

6 Os ventos sopram para o sul, depois viram para o norte; dão voltas e mais voltas e cessam no ponto de partida.

7 Todos os rios correm para o mar; contudo, o mar nunca se enche; ainda que sempre se dirijam para o mar, para lá voltam a correr.

8 Todas as atividades humanas geram cansaço. Nenhum ser humano é capaz de dar uma boa explicação sobre isso. Mas os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de escutar.

9 O que  foi voltará a ser, o que aconteceu, ocorrerá de novo, o que foi feito se fará outra vez; não existe nada de novo debaixo do sol.

10 Será que há algo do qual se possa dizer: ‘Vê! De fato, isto é absolutamente inédito?’ Não! Já existiu em épocas anteriores à nossa.

11 Ninguém se lembra dos que viveram na antiguidade. Não há recordações do que aconteceu no passado, e mesmo o que ainda vier a ocorrer de significativo não será lembrado por todos que vierem depois disso.

12 Eu, Cohéllet, o sábio, fui rei de Israel em Jerusalém.

13 Empreguei todo o meu coração a investigar e a fazer uso do saber para explorar tudo o que é realizado debaixo dos céus. Que fardo pesado Deus colocou sobre os ombros dos seres humanos para dele se atarefarem.

14 Examinei todas as obras que se fazem debaixo do sol e cheguei à conclusão de que tudo é inútil, é como uma corrida sem fim atrás do vento! 

15 Não se pode endireitar o que é torto; da mesma maneira que não se pode contar o que está faltando!

16 Então fiquei meditando: ‘Ora, aqui estou eu com tanto conhecimento acumulado que ultrapassa a sabedoria dos meus predecessores em Jerusalém; minha mente alcançou o ponto mais alto do entendimento e do saber.

17 Por esse motivo me esforcei ao máximo para compreender a sabedoria, bem como a loucura e a insensatez; contudo, o que aprendi, de fato, é que isso igualmente é correr atrás do vento.’

18 Afinal, quanto maior o saber, maior o sofrimento; e quanto maior o entendimento maior o desgosto.”

(Eclesiastes 1:2-16)

Mortalidade, imortalidade e sentido

Seria a imortalidade uma resposta à questão do sentido da vida? Será que a certeza de uma vida que nunca acabará pode dar sentido à nossa existência aqui e agora? Devemos nos lembrar do que afirmamos anteriormente, de que a existência de Deus não explica nada sobre o sentido da vida porque o próprio Deus é incompreensível. Quando as pessoas se perguntam pelo “sentido da vida” elas buscam algo que possam compreender, de modo que dizer que a resposta é “Deus” explica tanto quanto a resposta “quarenta e dois” do computador Deep Thought na obra O guia do mochileiro das galáxias.

A vida após a morte, de forma semelhante, também não é resposta ao problema. Se vivermos após a morte de nossos corpos físicos, a nossa existência será uma mera continuação desta vida ou então totalmente diferente. Se ela for como a vida atual, o fato de ser apenas muito mais longa não lhe confere sentido algum; se ela for totalmente diferente – o que parece fazer mais sentido, pois teríamos uma existência sem corpos -, é um tipo de vida que não podemos viver e nem compreender agora.

A morte só é vista como uma ameaça por aqueles que já estão convencidos de que a vida tem um sentido. Se a vida não tem significado ou propósito intrínseco, então o cessar da vida é um desafio unicamente para a sobrevivência. Sem a falaciosa convicção de que a vida tem um sentido, a morte deixa de ser este absurdo ameaçador.

É necessário considerar também que o fato de algo ser destruído não tira dele seu significado. A existência da morte ou da mortalidade em si não diz nada quanto ao sentido da vida, da mesma forma que um romance não-finalizado também não se torna sem sentido pelo fato de não ter sido completado por seu autor.

Considerada de uma perspectiva individual, a morte pode ser aquela que destrói o meu sentido particular, e não daquelas pessoas que fazem uma leitura externa de minha própria vida. Quando outras pessoas leem a história da minha vida, isso pode fazer total sentido para elas, mas não de meu ponto de vista. Parte do que me constitui enquanto ser humano é o fato de eu poder estabelecer planos e efetivá-los, de modo que a morte seria a limitação de todas as minhas possibilidades. Esta sensação de perder as possibilidades foi expressa pelo filósofo ateu Bertrand Russell pouco tempo antes de sua morte: “Eu odeio ter que deixar o mundo.” Aos 98 anos de idade, Russell lamentava o mundo que em breve perderia, mesmo considerando-o sem sentido intrínseco e acidental.

A questão é que o medo de perder oportunidades por causa da morte não resiste a um exame mais profundo. Não é apenas a morte que limita minhas possibilidades, mas qualquer escolha que faço. Para cada decisão que tomo, deixou de tomar inúmeras outras em seu lugar, e nunca posso voltar atrás nesta cadeia causal. Se neste momento estou escrevendo estas palavras, estou perdendo inúmeras outras possibilidades, como estar andando pelas ruas, assistindo a um filme no cinema, conversando com alguém, etc. Se cada decisão limita minhas possibilidades, por que temer apenas na morte esta característica? Se dissermos que é pelo fato de a morte nos privar da possibilidade de oportunidades de forma geral, podemos invocar o clássico argumento de Epicuro para nos lembrar que a quando a morte chegar, não estaremos mais aqui para lamentar esta perda de oportunidades.

O filósofo alemão Martin Heidegger afirmava que uma existência autêntica envolve uma liberdade apaixonada em direção à morte. Uma vida com sentido depende, em partes, de um reconhecimento honesto e corajoso da própria finitude, mesmo que isso provoque angústia. Tal consciência do passar inexorável de todas as coisas não apenas nos dá uma melhor compreensão de quem somos, mas também nos deixa mais receptivos ao momento presente.

A morte parece dar mais sentido à existência do que a própria imortalidade. Imaginemos uma situação na qual soubéssemos que viveríamos para sempre, sem dor e sem envelhecer. Isso seria uma catástrofe, e cada momento, cada alegria e cada encontro humano se tornaria vazio, sem sentido. Tudo o que podemos fazer agora, poderíamos fazer também amanhã ou depois de amanhã, de tal maneira que tudo se tornaria indiferente neste momento.

O que torna cada momento único e especial é o fato de que ele nunca voltará, e daí surge o paradoxo: sem preocupação com o fim da vida, não é possível uma existência com significado. Tendo isso em vista, podemos até imaginar que as pessoas talvez queiram viver duzentos anos, mas não indefinidamente, sem nunca morrer.

Glauber Ataide

Fonte: https://www.filosofiaepsicanalise.org/