Tolerância - Expressão de Harmonia

Me apropriei da frase “o que está dentro é como o que está fora” que encontrei no livro “O Caibalion“. Esta afirmação se chama o princípio da correspondência, e não passa de uma semântica com ar de enigmática para emitir a mensagem da presença de uma harmonia e relação entre os diferentes planos da existência, do microcosmo (o indivíduo) ao macrocosmo (o universo). Ficou difícil? Em termos coloquiais, os acontecimentos no interior de uma pessoa, nos seus pensamentos e sentimentos, tendem a se manifestar no seu mundo exterior, nas suas ações e nas circunstâncias em torno.  É um sinal de que o que está dentro se adapta com o que está fora e portanto o que está fora se encaixa com o que está dentro. Não seria também uma definição curta e grossa de sanidade mental?

A “tolerância” na língua portuguesa é um substantivo feminino e está descrito no Dicionário Houaiss como uma palavra oriunda do latim “tolerare“, com o significado de suportar, aguentar, admitir o diferente.

Apesar de estar presente em especificações do dia a dia, me chama a atenção duas: Tolerância aos inconvenientes parece que quanto mais se tolera mais conveniente fica para ele e mais chato se torna, exigindo de nós cada vez mais tolerância. E assim o tolerado se apresenta sem limites mensuráveis. Parece coisa de viciado que a cada dose tem de aumentar a quantidade por não tolerar mais a anterior.

Outra é Casa da tolerância. Está aí uma coisa que meu alcance nunca compreendeu é a razão pela qual estes estabelecimentos se identificam com este nome ou título.

Será que é por causa das infrações morais que as atuantes ali praticam ou é porque os tipinhos frequentadores da casa, muitas vezes exigirem  delas quantidades extras de tolerância ao ponto de se tornar a casa merecedora desta titulação?

Sim. Porque se fossemos levar ao pé da letra. Uma casa de tolerância deveria ser uma loja maçónica. Pois não conheci no planeta Terra lugar com maior contingente de seres tolerantes.

O certo é que tema do texto pode ser explicitado como a atitude capaz em aceitar ideias e comportamentos que não são os seus, mesmo que pareçam errôneos, excessivos. Tolerância em questões religiosas (especialmente) e filosóficas. Capacidade de um organismo tolerar uma substância (medicamento) ou tratamento sem perturbações mórbidas.

Se há um assunto sobre o qual não falta bibliografia, é o da tolerância. Os escritos deixados por Voltaire, Montesquieu, Denis Diderot, Jean Le Rond d’Alembert, Jean-Jacques Rousseau e demais pensadores do Iluminismo, filosofaram em abundância sobre a liberdade, sempre acompanhada do tema Tolerância.

As instituições básicas de ensino educam o cidadão a ser tolerante, nas suas acções, nos seus princípios e nas suas ideias. O problema é que o homem, na sua baixa tolerância à frustração e alta intolerância ao não idealizado, gostaria que os outros fossem como ele, adotassem o mesmo comportamento, agissem da mesma maneira, pensassem as mesmas coisas, se vestissem de forma idêntica.

No entanto, por ser cada pessoa diferente de todas as outras,  automaticamente, o reconhecimento da necessidade do esforço de buscar em si a capacidade de auto adaptação, torna-se incontestável ao humano que quer viver em harmonia.

Esforço de aceitar o outro como ele é com os seus defeitos, as suas qualidades, as suas especificidades, a sua identidade, admitir os outros como eles são, independentemente da sua língua, cor de pele, deficiência visível ou invisível e cultura. É reconhecer, ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente. Lembram da fala do chanceler no ritual de Aprendiz Maçom? Para fazer isso, o homem deve trabalhar em si mesmo e encontrar um “modus vivendi” aceitável. Conversar consigo ao invés de  conversar com os outros. O intrapessoal ao interpessoal.

Usei a palavra aceitável, porque acredito que todo ser humano tem limites e limiares de tolerância.

No nosso País, o senso comum de civilidade e democracia, ensina que a liberdade de cada um termina no momento em que prejudica o outro. Para o outro, esse momento se torna o limiar da intolerância.

Podemos? Devemos tolerar tudo? Não! Existem alguns argumentos, práticas e ações que não podem ser aceitos por estarem num patamar em que a sua existência quando sai do latente consiste em erradicar a existência de outras. A questão é: em que ponto eles podem ser considerados como tal?

A dúvida é solucionada pelo filósofo austríaco Karl Popper, cuja resposta explicou que ao aceitar os intolerantes, os tolerantes e a chamada sociedade tolerante, podem ser levados a destruição. Isso porque uma tolerância ilimitada se torna vulnerável a qualquer tipo de ataque intolerante que se disfarce sob o discurso da liberdade de expressão.

Ser tolerante é encontrar o equilíbrio, o meio termo. Equilíbrio é a situação em que as forças presentes são iguais, de modo que nenhuma supera a outra. É o que John Locke definiu como a abstenção do uso da força, especificamente na sua obra de 1690, Uma carta sobre a tolerância.

Este estado do sistema permite todos os desenvolvimentos, dos quais o equilíbrio estável e o equilíbrio instável são de alguma forma dois extremos.

Para o homem não iniciado, o equilíbrio pode parecer oposto ao movimento, mas em situações reais geralmente não há equilíbrio sem movimento.

Encontramos esta associação de equilíbrio na tradição oriental. A origem disto vem de um  “insight” ocorrido em Siddhartha Gautama, quando à margem do Ganges, escutou o diálogo, vindo de um barco de pequeno porte, entre um mestre e seu aluno ao afinarem a citar:

Se esticar demais as cordas, elas arrebentarão. Se muito afrouxá-las, não tocarão o som certo.”

“É o princípio de I-CHING, cujo grande livro é dedicado ao estudo dessa “sucessão de situações”, de equilíbrio em equilíbrio, a serviço da transformação da energia ao longo do tempo, de ciclo em ciclo.

Galileu Galilei, no pensamento científico ocidental da sua obra, “De Motu Antiquiora” escrita entre 1589 e 1592, afirma que o movimento é como a imobilidade.

Assim como Isaac Newton na sua obra “Philosophiae Naturalis Principia Mathematica” de 1687, com o “método das razões primeiras e últimas” toma cuidado para não separar a filosofia da mecânica.

Precisamos de um equilíbrio entre o bem e mal. Mas, também, precisamos de um ponto de partida, o nosso estado atual e uma meta.

Vale observar, que se o homem, como indivíduo dissociado, isolado e sozinho é normalmente intolerante, como grupo multiplica a intolerância de maneiras impressionantes e irracionais.

Em Franco-Maçonaria [1], o símbolo do pavimento em mosaico e do esquadro nos remetem a esta noção de equilíbrio. O esquadro une harmoniosamente os planos vertical e horizontal.

É uma síntese de duas dimensões que muitas vezes têm dificuldade de se encontrar.

De forma maniqueísta, a oposição do branco e do preto também simboliza o conflito perpétuo que existe no universo das coisas e na alma de cada ser humano. Eterna coexistência entre a Luz e a Sombra, o bem e o mal, a verdade e o erro.

Na vida, à medida que buscamos e vivenciamos, é-nos permitido o alcance do equilíbrio para definirmos e nos focarmos no nosso propósito. Equilíbrio e propósito criam um equilíbrio dinâmico. Uma espécie de harmonia.

A palavra harmonia geralmente se refere à simultaneidade de sons na música. No entanto, este termo pode ter vários outros significados, relacionados ou não à música e aos sons. É derivado do grego armonia , que significa “arranjo”, “ajuste” e, mais precisamente, designa a maneira de afinar a lira.

No seu significado mais comum, relacionado às simultaneidades na música, a harmonia deu origem a uma literatura abundante, de Platão e Aristóteles até Olivier Messiaen e Paul Hindemith. No entanto, mesmo neste campo específico, o termo pode ter significados diferentes.

Nestes homônimos, a harmonia das esferas é uma teoria esotérica de origem pitagórica que mistura música e astronomia.

Em linguística, a harmonia vocálica é uma modificação fonética das vogais da mesma palavra ou frase.

Na mitologia grega, Harmonia é a esposa de Cadmo e a rainha de Tebas.

Em astronomia, refere-se a um astro, chamado de asteróide 40 Harmonia, que foi descoberto em 31 de Março de 1856 por Hermann Goldschmidt. Recebeu esse nome em homenagem à helênica divindade de idêntico nome, filha dos dois extremos, Ares e Afrodite.

Na composição de uma fotografia ou uma pintura colorida, harmonia cromática é o conjunto de teorias sobre a reunião das cores para a criação de uma obra qualquer que seja a técnica.

Para os maçons dentro de templo, a coluna da harmonia, por meio de escolhas criteriosas do Mestre que a dirige, entrar em simbiose com a palavra que acaba de ser transmitida numa loja ou prepara para a passagem do mundo profano para o Sagrado.

Chamou-me à atenção três linhas do primeiro artigo da Constituição de Anderson de 1723:

“…guardando as suas opiniões particulares para si próprios, isto é, serem homens bons e leais, ou homens de honra e honestidade, qualquer que seja a denominação ou convicção que os possam distinguir.”

Por dar um oriente aos seus adeptos, em frases subtis, de que desde a sua fundação como especulativa, a Franco-Maçonaria tem a característica de aceitar a legítima pluralidade de perspectivas.

Isto, leva-nos a enxergarmos a necessidade de tolerância, o que faz da Maçonaria um verdadeiro centro de união entre os homens.

Na sua busca pela verdade, o Maçom sabe que jamais poderá alcançar a verdade absoluta, o cósmico. A verdade não pode ser percebida na sua totalidade. A busca do Maçom praticante do rito escocês antigo e aceito, fundada na crença num Princípio Criador e na razão, só pode se basear na penumbra da probabilidade?

Não, a busca do Maçom, embora fundamentada na crença num Princípio Criador e na razão, não se limita à penumbra da probabilidade, mas sim se apoia na ciência e na busca contínua pela verdade, sem se prender a dogmas ou superstições. A Maçonaria progressista não impõe limites à razão, desde que esta seja fundamentada na ciência, permitindo um esforço humano na busca da verdade. E isto está bem ajustado no congresso Maçônico de Lausanne de 1875.

Segundo, o pai do liberalismo político, John Locke, no seu ensaio acerca do entendimento humano de 1689, é por essa razão que devemos praticar a tolerância, mas uma tolerância bem compreendida. Devemos ter humildade diante da nossa ignorância mútua e, portanto, não descartar os outros como obstinados, teimosos ou perversos porque não querem ou não podem abandonar as suas opiniões para abraçar as nossas. A tolerância é o oposto do sectarismo e do fundamentalismo, que é a negação da liberdade de consciência. Combina muito bem com a brilhante frase do poeta maranhense Ferreira Gullar: “Não quero ter razão, quero ser feliz”.

É importante saber que “consciência” deriva do seu termo etimológico “conhecimento”, que se alcança por meio de um ato que consiste em separar o verdadeiro do falso, o contingente do essencial. Baseia-se no conhecimento íntimo dos seres e das coisas, a partir do autoconhecimento.

O que acabei de afirmar é o ideal. Supracitada atitude positiva não está ao alcance de todos os homens, nem mesmo, infelizmente, de todos os maçons. No entanto, como Loja de São João, esse objetivo não é intransponível. Podemos ao menos tentar enxergar de forma quotidiana o que diz no capítulo 14, versículo 2: João o Evangelista cita uma palavra de Jesus aos apóstolos: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito; vou preparar-vos lugar”. Não é esta uma mensagem de tolerância?

É a tradição primordial no seu conteúdo esotérico que é única, mas com variantes exotéricas. Como exemplo, no Oriente médio, Judaísmo e Islamismo, a unidade é defendida, já na Ásia, tanto o Taoísmo quanto o Zen, glorificam a simplicidade e o anti materialismo. No entanto, o cristianismo, na condição de senda de maior difusão ocidental, se dedica a  exaltar o amor.

O estudo das diferentes escolas de busca evolutiva espiritual pessoal mostra-nos que a Maçonaria, principalmente do Rito Escocês Antigo e Aceito, por ser uma das últimas guardiãs da tradição primordial ou gênese, adota de forma sincrética todos esses procedimentos para criar um sistema iniciático global.

A tolerância é “sui generis” e intrínseca à Franco-Maçonaria, da mesma forma a busca pela harmonia e pelo equilíbrio constante.

Leonardo Redaelli
CIM 348202 – ARLS.'. "Progresso da Humanidade" N° 3.166 – Oriente de Porto Alegre / RS (GOB)

Nota
[1] Maçonaria e Franco-Maçonaria, são correctos e referem-se à mesma sociedade, sendo “Maçonaria” a forma mais comum e abreviada, enquanto “Franco-Maçonaria” é o termo mais completo e histórico.

Bibliografia
LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Tradução de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 2020.
GRANDE ORIENTE DO BRASIL – RIO GRANDE DO SUL. Ritual do Aprendiz Maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito. Porto Alegre: Grande Oriente do Brasil – GOB, 2009.
LOCKE, John. An Essay concerning Human Understanding. Oxford and New York: Routledge, 2005.
ANDERSON, James. Constituição de Anderson: 1723. Tradução, comentário e notas de Cipriano de Oliveira. 2ª edição. Chamusca: Cosmos, 2011.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Tradução de Anoar Aiex. (Colecção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Publicado na página https://www.freemason.pt/