Tratado entre Deus e o Rito Moderno

Não sou filósofo de formação, sou um “filosofador”, termo que acabei de criar, significando, quem brinca com filosofia, ou filosofista, que significa, falso filósofo, tanto faz. Todo mundo tem o direito de filosofar, mesmo quem não se formou em Filosofia, como Aristóteles, Platão e outros.

Filosofar, é pensar. Refletir a própria vida, a do próximo, mesmo porque, nossas conclusões servirão de conselho a quem pudermos repassar nossas ideais.

E um dos temas mais recorrentes de nossos pensamentos, quando não são nossas obrigações cotidianas, é a nossa origem, nossa inspiração, e quem é o responsável por tudo o que acontece na vida, na natureza e o depositário de nossa esperança em um melhor porvir. Deus ou uma alternativa a essa ideia.

O ser humano tem, como característica, a necessidade de carecer de “muletas”, viver amparado em dogmas e mistérios que ele cria e depois não consegue decifrar racionalmente, apenas viaja nas fantasias que lhe dão sustentação psicológica e moral, Moral que é a regra de convivência estabelecida em determinada época e local.

A fonte dessa moral, muitas vezes, ao invés de ser o humanismo, a fraternidade humana, a solidariedade, a empatia, todas essas sentimentos humanos racionais, é calcada em princípios religiosos firmados por determinadas pessoas, dogmas, alguns, convenhamos, de boa natureza, emprestando as virtudes humanas já descritas, mas, na maioria das vezes, uma moral feita sob o anto do medo, do castigo, da repressão, do fogo do inferno, ou da fogueira propriamente dita.

Essa muleta, é o que o faz não cair a toda hora em conflitos de pensamento, mesmo porque, são poucos os seres humanos que tem a visão clara de que tudo o que é possível se fazer, depende de seu esforço e conhecimento, da Razão, da atitude.

A maioria, ignorante, espera que “alguém” lhe conceda esse favor, um milagre, uma dádiva. Conta ainda com o apoio e a profecia dos intermediários das divindades com um coletivo de pessoas que possuem a mesma “fé”. Esse é o homem medíocre.

Isso se chama religião, uma crença em uma série de dogmas criados por homens, que se dizem iluminados pela divindade, seja lá qual for o Deus, porque foi ungido para essa missão.

Não se menospreza também a religião aqui, mas o fanatismo, a obediência cega a esses dogmas, sem questionar, sem duvidar de fábulas apresentadas como verdade, incluindo a tese do criacionismo, quando temos a comprovação científica de como nosso cima solar e galáxias foram criadas. Em algum momento a ciência encontra limites, e ela se silencia, não arrisca. As crenças e religiões caminham após esses limites, mas sem bússola, dependendo da imaginação de cada um dos que se atrevem a transpor a linha de conhecimento científico.

Não, não há qualquer menosprezo por crenças individuais, há menosprezo pela ignorância. Admiro o ser humano que debate e argumenta as razões pelas quais crê ou deixa de crer em algum dogma, em algo abstrato, principalmente se é fruto do imaginário coletivo, porém, baseado em fatos, em experiências próprias, vividas e refletidas.

Todavia, rejeito a possibilidade de crenças vazias, sem fundamentos, frutos da imaginação de outrem apenas, do despudor moral em usar uma tese para transformá-la em instrumento de medo e chantagem emocional de pessoas sem estrutura intelectual suficiente para discernir o razoável e possível do imponderável.

A Maçonaria tem uma missão objetiva, despertar o homem para as virtudes incutidas no simbolismo, que é um método filosófico, usado para transmitir esse comportamento ideal a seu redor. O homem virtuoso deve ser exemplo e assim contagiar o mundo que o cerca, e são várias as formas de fazer esse trabalho importante, sendo o exemplo de postura e comportamento, o mais eficiente, ao lado das ações objetivas que se pode e deve praticar, em não sendo preguiçoso.

Só se transforma o mundo, aliás, por ações e por exemplos. Transformar o mundo, aqui, tem a conotação de progresso moral, de ajuste continuo da possibilidade de convivência harmoniosa entre a comunidade e os povos da orbe, o que sabemos, tem sido o grande problema da humanidade, bastando ver o quadro de guerras, violências urbanas e ações que agridem a vida humana principalmente, além da própria natureza, fonte de nossa vida.

Construir uma sociedade ideal, a cada dia, é o trabalho do pedreiro social, do maçom que tem noção de sua missão. Essa é uma premissa q não pode ser esquecida.

A pergunta que se segue, é: ele precisa crer em um Deus determinado por alguém, por um coletivo ou religião, para ser esse exemplo, esse construtor social? Cremos que não, ele precisa viver esse modelo que quer transmitir por seus atos e palavras. A crença metafísica sempre foi intima entre aqueles que pensam, que são livres pensadores, que são pesquisadores da verdade. Geralmente não se manifestam publicamente sobre ela.

Ele pode chegar à conclusão de que Deus, de Abraão, é o verdadeiro criador do universo, sem dúvida, mas não porque foi ensinado pelos pais e pela autoridade religiosa de plantão, um orientador, um intermediário desse dogma para multidões que não têm o direito de questionar, de duvidar ou participar da construção das lendas e fábulas criadas no sentido de criar e depois aplacar o medo do desconhecido, do futuro, do pós-morte. Ele pode se encontrar intimamente com essa tese.

Se o maçom tem noção de sua missão, de seu propósito, ele tem que refletir sobre o que lhe foi imposto e as demais possibilidades, inclusive da possibilidade de que o homem tem limites de conhecimento, de que caminha há pouco tempo em direção ao conhecimento científico, pois são apenas 2 mil anos de estudos, cheios de preconceitos e limitações em uma geração de mais de 100 mil anos, e, em um ambiente formado há bilhões de anos.

Isso não o afasta das possibilidades, mas deve afastá-lo do dogma, a verdade revelada que não admite contrariedades. Crer sim, mas admitir sempre a possibilidade de mudanças, ser aberto à possibilidade de que o outro também tem o direito de pensar diferente, e, com esta dúvida, acreditar que qualquer um pode ter razão, ou ninguém.

Essa é a chave, a Tolerância, tão decantada em Maçonaria mas que poucos a possuem, porque Tolerância é um ato de generosidade para começar, de bondade, de amor ao próximo, o que o ser humano, em grande parte, desconhece. Tolerar é aceitar a ideia, o pensamento do outro, não seus atos imorais ou antiéticos. Tolerar é respeitar a possibilidade de o outro ter a chance da razão, mesmo que eu não goste da ideia.

Sim, é muito difícil tolerar. Como é difícil ver um homem, ou uma mulher, aparentemente bem informados, cultos, se apegarem a dogmas de forma irracional e radical e o pior, não admitir outra possibilidade.

Na Maçonaria isso ocorre quando maçons, que entraram e aprenderam, por seus mestres, que a Maçonaria só é verdadeira se tiver a Bíblia aberta ou aposta em algum local da Loja. Uma verdade revelada, uma crença medieval, de quando era obrigado, pelas forças da ignorância e do despotismo, da tirania, a crer, ou a dizer que se acreditava, sob pena de queimar em uma fogueira ou morrer em masmorras esquecidas pelos crentes.

Com absoluta tristeza observamos os mesmos discípulos dos tiranos, dos déspotas, apontarem o dedo para maçons que entram na Ordem pelo Rito Moderno, por não “adorarem” o Deus de Abraão em Loja, mesmo sabendo que a maioria deles é de católicos ou cristãos de outras matrizes, ou Jeová dos judeus, ou Ala dos muçulmanos.

Ainda, com essa atitude, desprezam seguidores de outras correntes orientais, como hindus, budistas e outros que têm crenças diferenciadas, às vezes mais antigas do que as abraâmicas, e o pior, apontar o dedo para os que têm o direito de estarem em dúvida. Agora, a certeza da verdade é o pai da ignorância, já sabemos.

Deus é fruto da experiência de cada indivíduo, é uma relação intima de si mesmo com sua consciência, experiência que não pode ser ditada ou induzida por outros.

Quando isso ocorre, ou você desconhece a sua própria natureza, não pensa livremente e pouca diferença faz o que se dizem, apenas acredita e segue a manada, porque vc está alienado com esse pensamento, voltando sua atenção para sua sobrevivência, suas vaidades e necessidades cotidianas, ou você desiste de debater o assunto, apenas aceita uma ideia e cumpre um ritual social de dizer que crê, de frequentar poucas vezes, de aceitar as regras religiosas, só para não se incomodar. Piora tudo isso quando exige que os outros façam o mesmo para manter a tradição ou as aparências sociais.

O grande “crime” da intolerância reside em não admitir que o outro pense por si só, que pense diferente, que tenha outra concepção de Deus, ou até que não tenha nenhuma, o que pouca diferença faz, porque se é diferente da sua, simplesmente não há credibilidade na ideia desse próximo ou quando se força as pessoas próximas a seguirem seu pensamento.

Algo mais comum do que se possa imaginar, tanto na família, como ocorre na Maçonaria, onde maçons querem “obrigar” outros a terem como referência um livro religioso, sob pena de censura, de excomunhão ou afastamento, hoje chamado de cancelamento. Exatamente como as religiões agiam ou ainda agem em determinados locais, oprimindo e ofuscando a população, moral ou fisicamente.

Resta que, o rito Moderno é o espaço para aqueles que simplesmente não querem debater o ponto, não querem misturar crença, fé, misticismo, com a escola da Razão, da construção social, independente de nossas preferências.

Se é intima essa crença, ela é só minha, não do próximo, mesmo sendo irmão. Essa crença não precisa ser provada ou comprovada com genuflexões ou orações, com a presença de um livro de escrituras sagradas de determinadas religiões.

O que prova que eu sou um homem de bem são meus atos. Nem mesmo minhas palavras conseguem, muitas vezes, exprimir quem sou, mas sim o que faço ou deixo de fazer. E outra, quem é apto a me julgar? Basta eu dizer que creio no seu Deus e que me ajoelho diante da sua Bíblia para eu ser bom ou aceito na Ordem dos Pedreiros Livres? Ou a hipocrisia é a moeda válida nas hostes maçônicas?

Vejo autoridades (?) maçônicas chegarem ao absurdo de declarar que o espaço físico de uma Loja é sagrado, portanto maçons de potencias irregulares ou não reconhecidas, não podem pisá-lo (mas sim profanos, muitas vezes). Vendo o Ato No. 173 –  da Grande Loja de São Paulo, de agosto de 2020,  custa-me a acreditar no que leio, uma prova cabal do atraso da maioria dos maçons brasileiros no pleno exercício da “autoridade”, conferida por maçons não mais ilustrados que o próprio .

Atraso intelectual e moral. Confundir o espaço da Oficina, local de trabalho dos maçons, com o espaço sagrado das religiões, dizendo que ali é local de “adoração” ao GADU. Então, os outros maçons, de potencias irregulares ou não reconhecidas, uma regra humana e tirana, na maioria das vezes, política, sórdida até, pode se tornar a palavra de “deus” ao determinar que ali é solo sagrado. Ridículo, muito abaixo da linha da mediocridade.

Não. Não é dessa Maçonaria que precisamos no mundo. Não é com esses homens de pensamento bitolado e cheio de verdades reveladas que faremos alguma diferença. Eles são mais do mesmo.

Não saíram da área do profano. Apenas se revestiram de ouro e prata para serem meros contribuintes do clube, ou pastores, líderes de ovelhas prestes a serem tosquiadas. Eu prefiro ser o lobo nessa fábula. O lobo mata para viver, para se manter, não tem medo, tem coragem, tem responsabilidade com sua cria.

O Rito Moderno permanece, aqui no Brasil, pelo menos, na maioria das Lojas, imune à tentação de se juntar aos fanáticos e improdutivos homens que somam na massa ignorante, mas não lideram, não pensam, não buscam suas verdades. Graças à reforma de 1877 no GOdF abriu-se uma luz para homens que querem uma Maçonaria livre, um verdadeiro centro de união de todos os pensamentos, onde debatam e somem à humanidade. E ainda bem que mantivemos essa linha de pensamento racional no rito Moderno aqui no Brasil, onde há muitas possibilidades, e um país de muita criatividade, nem sempre úteis, mas diverso.

O nosso trato, Rito Moderno com Deus, é o seguinte, pedimos o direito de crer ou procurar essa crença em silencio, de não usá-lo como objeto de adoração ou preenchimento do tempo em que nada produzimos de útil para a sociedade. A Maçonaria cuida da inteligência, da filosofia de vida, do comportamento, da obra social, enquanto as religiões cuidam do espírito, dos mistérios e das crenças. Uma justa divisão de tarefas.

E deixamos as nossas religiões e crenças para nossos momentos de recolhimento, para a reflexão sobre as coisas espirituais. Nas Oficinas, estudamos a prática das virtudes que nos preparam para o trabalho de progresso intelectual e moral. Esse é o nosso pacto com Zeus, Yahweh, Jeová, Deus, Carvalho Sagrado, Alah, Caos, Shiva, Júpiter, Lúcifer, Tupã, Manitu, Odin, Inti, Quetzacoalt, Lilith, Quetzalcoatl ,Wotan, Flying Spaghetti Monster, Yav, Kami, Kali, Gamab, Tiamat, Temut, Nu Kua, Tehom, Krishna, Mawu, Guaraci, Olorum, Jah, Nzambi, Mawu, Odé, Ranginui, Shangdi, Ormuz, Thor, Atégina, Dagda, Rá, Adhinatha, Nhanderuvuçú ou GADU é trabalhar o desenvolvimento humano, deixando para as religiões e cada indivíduo encontrar o caminho da divindade. Essa é a nossa proposta de Maçonaria.

* Marco Piva 

ARLS∴ "Livre Pensamento" – Guaramirim, SC – Rito Moderno

Fonte: https://bibliot3ca.com/