Utopia

O exercício matinal de leitura dos jornais é um desafio para qualquer tratamento com antidepressivos. A cada dia, seria necessário um aumento da dose, o que levaria a níveis letais. A escolha fica então entre suicidar-se ou morrer de overdose. Saída menos trágica é aproveitar a leitura para alimentar reflexões que, na pior das hipóteses, podem ser completamente estéreis, ou, com certa dose de onipotência otimista, podem levar a uma “troca de figurinhas” de alguma utilidade.

O susto cotidiano começa com as manchetes, onde o descalabro é anunciado em letras garrafais. Técnica jornalística, sim, mas, infelizmente, isso é só o começo. Em vez de amainar-se o tom, à medida que o leitor vai virando as páginas e se enfronhando nas notícias do dia, os gritos aumentam e  o estarrecimento vai ficando maior. Ao lado das reportagens factuais sobre toda sorte de acontecimentos estapafúrdios e catastróficos, obras da Natureza ou do Homem, os comentários dos colunistas, alguns brilhantes e construtivos, outros anedóticos, vão informando e contribuindo para desenhar na mente de quem os lê uma imagem desoladora do estado atual do nosso país.

Utópico é o remédio que imagino. Na minha imaginação, esse remédio passaria por uma completa reorganização política. O governo federal, no Brasil, tem um poder tão esmagador que se torna ineficiente.

 

A primeira página nunca foi, é verdade, reservada a amenidades. Para isso existe o segundo caderno. É praxe os cotidianos se abrirem com notícias alarmantes ou eufóricas, mas sempre sensacionais, para aguçar o apetite do leitor. O que chama a atenção agora é a abundância de referências ligadas de uma forma ou outra a crimes e à marginalidade. O noticiário policial é o mais rico e o mais sórdido, indo dos crimes chamados de colarinho branco, dos quais hoje boa parte da cúpula da Petrobrás detém o record, até os de abuso de “autoridade” em que os agentes da lei se transformam em criminosos.

Percorremos assim, de cabo a rabo, um amplo espectro de horrores que revelam toda a extensão da nossa desgraça: corrupção generalizada, com o escândalo da Petrobrás puxando o cordão; crimes de toda espécie, perpetrados inclusive pelos que deveriam nos proteger, como os graves deslizes de segmentos da PM; baixíssimo nível de educação, demonstrados  no ENEM, com zeros distribuídos a rodo; problemas na área da saúde, com falta de leitos para pacientes, já que neles deitam e rolam os médicos e fornecedores de próteses desnecessárias e superfaturadas. Na área econômica também abundam os motivos de angústia: notícias da necessidade de aumentos e cortes diversos, em tarifas e benefícios, por exemplo; incertezas nas políticas econômica e fiscal; evidência de imprevisão ou simplesmente de má fé, em vários setores, como os de energia, transportes e saneamento.

Não pretendo, nem de longe, ter resposta para os males que assolam o Brasil. Acho que foi isso que me levou a escolher o título deste texto. Virou lugar comum dizer que o tamanho e a complexidade dos problemas do país são diretamente proporcionais às suas dimensões geográficas. Simplesmente acredito numa impressão que não é nova, mas que se reaviva com o tsunami de más notícias que nos invade: nosso governo, tal como está estruturado, torna impossível implementar qualquer medida, em qualquer setor, que possa levar a qualquer forma de solução. Não me refiro apenas ao atual governo, mas sim à estrutura e à organização  governamentais cujas deficiências vem se agregando desde tempos mais longínquos. Utópico é o remédio que imagino, mas como disse acima, não custa arriscar uma opinião.

Na minha imaginação, esse remédio passaria por uma completa reorganização política cuja diretriz principal seria a descentralização. Acredito que o governo federal, no Brasil, tem um poder tão esmagador que se torna ineficiente. O ideal seria que o poder fosse sendo  construído a partir de pequeno grupos e comunidades, que tratariam de resolver seus assuntos e de levar até a capital, através de seus congressistas, apenas o essencial, o que é de interesse nacional. Na minha ignorância, achei, ao fazer essa observação, que eu havia descoberto a pólvora. Mas já no primeiro terço do século XIX, Alexis de Toqueville (“De la Démocratie en Amérique”) havia sublinhado, entre outras, essa característica da formação do Estado norte-americano, por oposição ao centralismo dos governos europeus. Parece-me que a única solução, num país de dimensões continentais com uma problemática extremamente variada, seria uma transferência de mais responsabilidades, principalmente em áreas como educação, saúde, saneamento e transportes, para a esfera municipal e estadual.

Numa estrutura ideal, a meu ver, o governo federal poderia se concentrar nas tarefas  de coordenação e nos temas que afetassem as leis gerais da União, a política econômica, o equilíbrio fiscal, o relacionamento do país com o exterior, tanto do ponto de vista político quanto econômico e social, temas, enfim, que têm uma expressão federal indiscutível.

É evidente que esse quadro está extremamente simplificado e que essas idéias  mereceriam qualificações, precisões e reservas. E que, pelas características tão arraigadas não só de nossa estrutura, como também de nossa mentalidade política e social, seja, de fato, uma utopia. A verdade, porém, é que precisamos urgentemente de novas utopias. As nossas estão desgastadas. “Traüm weiter!”  – continue sonhando – diriam os alemães.

 

* Marilu Valente 

é economista e diplomata