Vaso quebrado é mais resistente

 

 

Somos cheios de medo e invariavelmente equivocados quanto ao verdadeiro valor das coisas, gestos e porque não dizer da nossa consciência acerca da vida e suas dimensões ainda tão pouco conhecidas. Carregamos uma linda flor desabrochada a cada manhã, plantada sobre um riquíssimo vaso decorado com alguns quilates de ouro puro. É comum ver que o vaso quase sempre nutre mais atenção que a flor. 

 

Embora seja a flor o espírito da “vida” é o vaso brilhante de matéria escaldante e ardentemente desejosa que nos rouba a cena de uma vida inteira. O vaso e a flor não representam só o espírito e a matéria - somos indiscutivelmente seus vassalos para qualquer outra situação. Quantas vezes não guardamos nosso amor dentro desse vaso e lá esquecemos, 

olhando fixamente o tempo todo para seus adornos… e… e… simplesmente nada mais?

 

Hoje, mais que a qualquer época, vivemos dias de tragédias por toda parte … e que bom… abençoadas sejam estes dias de angústias. Está certo Ralph W. Emerson quando disse: “A tragédia está nos olhos de quem a vê, e não no coração de quem sofre”. Quem vê não compreende que foi o vaso que se espatifou libertando os sentimentos esquecidos - os reais sentimentos divinos de que o homem é feito. Só o coração de quem sofre consegue avaliar o que de falso perdeu e verdadeiro reconquistou, ainda que a lição seja dura e em alguns casos faça parecer impiedosa. Sobre essas perdas e ganhos, esses vasos quebrados, refletiu o filósofo escravo Epíteto: “Perdeste bens, prazeres, distinções, e a isso considera grandes perdas, de que não consegues consolar-te. Mas pouca importância dás à perda da fidelidade, do pudor, da doçura, da modéstia. No entanto, o que arranca aqueles bens é uma causa involuntária e alheia a nós; por conseguinte não há desdouro nenhum em perdê-los. Quanto aos últimos, que são bens interiores, se os perdemos é por culpa nossa; e se vergonhoso e reprovável é não possuí-los, mais digno de censura e de vergonha é perdê-los”.

 

A todo o momento, pequenos ou grandes vasos estão oportunamente sendo quebrados pela escassez da doçura, da poesia e do simples abraço a um filho, pai ou amigo. Ao ver o vaso quebrado sugiro que o deixe como está. E desnudo convide aquele sentimento que estava aprisionado a transformar a sua, a minha, as nossas vidas. Deixar o vaso quebrado o fará ser como uma esponja do mar, inigualável, servindo de grande pódio para a nova for que se desabrochará ainda mais vívida. A esponja do mar é o animal mais simples e ímpar da natureza. Se você passar uma esponja num moedor de carne aos poucos cada pedaço se juntará de novo para refazer o animal original ainda mais forte e resistente. “Nenhum outro “ser” consegue se regenerar assim”, diz a National Geographic News. Assim são nossos vasos quebrados, de um jeito ou de outro eles se regeneram - mas se aprendemos a lição da queda, então agora eles já não serão mais nossos algozes. Ainda mis resistentes, servirão à nossa flor, declamarão versos cativantes e criativos, serão os figurantes ao encenar a peça de cada momento da vida.

 

E se por teimosia não aprendemos a lição da queda? Ouçamos o autor do “Jardim das Rosas”, o poeta persa Saadi declamar: “Aquele que aprende e não põe em prática o que aprende é como aquele que ara e não semeia”. Um vaso quebrado é esta oportunidade única de que fala o poeta - uma grandiosa oportunidade de arar e semear em terras férteis. Quando o vaso se reconstruir, será muito resistente, mas milhares de linda flores não caberão dentro dele - ele será o que sempre deveria ter sido - um simples servo. E a flor, reinando impecavelmente em todos os campos e jardins, a sua Senhora. 

 

Marcelo Moryan

 

Fonte: Revista “Entre Colunas” - www.entrecolunas.com.br