Você tem autonomia?

Desculpe incomodar, mas meu cartão magnético não está mais abrindo a porta de meu apartamento. Será que você poderia fazer o favor de abrir para mim?

Eu estava hospedado em um hotel de arquitetura horizontal. Daqueles com longos corredores onde o hóspede não tem alternativa senão preparar-se para caminhar um bocado até chegar às suas acomodações, muitas vezes adiando seu merecido descanso. Era sábado, por volta da primeira hora da tarde. Eu havia terminado de conduzir um seminário e estava louco para voltar para casa. Minha ambição pessoal era simplória, mas urgente: fechar minha mala e correr para o aeroporto. Mas, para meu desalento, a porta recusou-se a abrir, pois as chaves magnéticas esgotam seu poder de Sésamo ao meio-dia. Desolado, eu me preparava para enfrentar uns 300 metros de corredores e escadas, quando percebi que havia uma funcionária do hotel saindo do quarto ao lado, então lhe fiz a solicitação acima, à qual ela respondeu, com a superioridade pretensiosa das pequenas autoridades:

-Lamento, senhor, mas o senhor terá que ir até a recepção pedir que seu cartão seja recarregado.

-Entendo, mas você não pode me ajudar? Sou um cliente do hotel e estou com um problema! argumentei, esperando, como resposta, uma atitude de solidariedade e de competência.

-Não, não posso fazer nada. Trata-se de uma norma do hotel, e não está a meu alcance resolver esse tipo de problema. Meu trabalho é verificar o consumo do frigobar.

A funcionária era uma seguidora de normas.

Ok, não há nada de errado com isso; antes o contrário, pois lugares sem leis, normas ou regulamentos são desorganizados, anárquicos e ferem os princípios mais básicos da civilização. Entretanto, a absoluta incapacidade de interpretar a norma e adaptá-la a uma situação particular demonstrava que tal funcionária era uma pessoa limitada. Era heterônoma, alguém que só obedece às ordens e às determinações de seus superiores, sem liberdade de pensamento, sem opção. Sem autonomia! Uma pessoa assim é conformada, ou seja, foi colocada em uma fôrma que definiu sua forma, e assim ela o será, até que alguém, eventualmente, a coloque em outro recipiente delimitador.

Mais responsabilidade

É claro que se ela abrisse a porta, sem se certificar de que eu era mesmo o hóspede daquele quarto, estaria desrespeitando uma norma de segurança, correta e necessária. Mas, convenhamos, ela tinha opções. Podia solicitar-me um documento, consultar a recepção por telefone e resolver a questão em um minuto, deixando um hóspede aliviado e satisfeito. Mas não. Ela achava que não podia fazer isso porque seu trabalho era verificar geladeiras, e não ajudar hóspedes em dificuldades.

Essa limitação é comum em ambientes de trabalho que privilegiam a obediência em detrimento do pensamento.

Trata-se de uma política que desconfia das pessoas. Uma empresa assim não acredita que seus funcionários sejam comprometidos e responsáveis. Trata seus colaboradores como peças de máquina, partes de uma engrenagem mecânica que têm funções específicas e não podem ultrapassar seus limites, mesmo que isso não colabore para o funcionamento ideal do todo, do conjunto harmônico da organização. É melhor não tentar que se arriscar a errar, reza essa cartilha ultrapassada.

Eu me queixei ao recepcionista do hotel, depois de caminhar pelos infindáveis corredores. Ele, por sua vez, comunicou o gerente do hotel, que depois me procurou, dizendo:

-Professor, soube que o senhor teve um problema com uma funcionária do hotel.

-Não. Eu tive um problema com o hotel argumentei, deixando-o perplexo, pois havia se dado conta que, naquele momento, a funcionária era também o hotel.

-Pois é, professor, temos muita dificuldade de contar com bons funcionários nesta cidade, apesar do treinamento que eles recebem me explicou o gerente.

Resolvi ajudar o desorientado gerente:

-Esse é o problema, meu caro. Você não deve apenas treinar, mas educar. Treinamentos desenvolvem habilidades específicas; educação ensina a pensar. O treinamento faz obedecer a ordens cegamente e gera pessoas dependentes. A educação desenvolve pessoas pensantes, responsáveis, autônomas.

E me despedi, deixando para trás um gerente atônito com essa nova visão de gestão de pessoas e desenvolvimento humano. Cumpri com a missão de educador: semeei a curiosidade.

Degraus da autonomia

A propósito dos educadores, a psicóloga paulista Renata Jubram, mestre em educação, arte e história, autora do livro Inteligência ou Inteligências? Da Eugenia à Inclusão, ao debruçar-se sobre o tema do julgamento moral das pessoas e da sociedade, terminou por encontrar as pesquisas do psicólogo americano Lawrence Kohlberg. Ela explica que ele identificou seis fases de amadurecimento entre um estado de total heteronomia, em que a pessoa é um mero repetidor de ordens, e a condição de autonomia plena, que entrega ao indivíduo a liberdade de agir e a dignidade de se posicionar como protagonista das histórias que compõem uma vida.

Vamos analisar um exemplo, com auxílio da literatura universal.

Jean Valjean, o personagem de Victor Hugo em Os Miseráveis, em desespero, assalta uma padaria, pois ele e seus irmãos estavam com fome e não tinham nem dinheiro, nem emprego, nem perspectivas. Por seu crime, foi condenado e cumpriu 19 anos de prisão. Você, caro leitor, também condenaria Jean Valjean? Ele roubou, sim, mas será que a justificativa para tal infração não era suficientemente justa? A lei está sempre acima de todas as outras causas morais? Vamos analisar essa situação com base nos seis estágios de Kohlberg, cada um com sua própria motivação. Deveria, afinal, Valjean ter roubado o pão?

1. Medo da punição: Não, não pode roubar. Quem rouba vai para a cadeia.

2. Expectativa de recompensa: Não. Se ele não roubar, pode ser que alguém lhe dê um pedaço de pão.

3. Expectativa de reconhecimento: Não, não deve roubar, assim será admirado por ser honesto, apesar das circunstâncias.

4. Cumprimento do dever: Não, pois a lei é clara: não pode roubar.

5. Contrato social: Não e sim. Pela lei, não deve roubar, mas a lei é injusta com os desvalidos. Deveria ser adaptada a cada situação.

6. Princípios universais da moralidade: Sim. A lei não permite roubar, mas sua família está com fome e ele não tem alternativa. A vida está acima das convenções sociais. Deve ser perdoado por ter roubado o pão.

Os dois últimos estágios são chamados de pós-convencionais por ensaiarem escapes às regras pré-convencionadas e colocarem a pessoa em situação de autonomia.

Mas atenção: a maturidade e o conhecimento são os dois fatores que nos propiciam essa evolução. Maturidade porque junto com ela vem a assunção da responsabilidade; conhecimento porque esse é o caminho para a lucidez. Vejamos mais alguns exemplos:

A funcionária da história do início deste artigo provavelmente está no estágio 1. Teme contrariar as normas do hotel, com medo de perder o emprego. Um torturador da ditadura militar, quando levado a julgamento, alega que estava apenas cumprindo ordens. Essa justificativa é típica do estágio quatro, a do cumprimento do dever apesar de tudo. O tratorista baiano que, em 2003, se recusou a cumprir a ordem do oficial de justiça de demolir a casa de uma família que chorava, mesmo recebendo voz de prisão pela desobediência, é um raro caso de autonomia estágio seis. Seu ato foi legalmente errado, mas moralmente correto. Pontos de vista diferentes ou graus variados de maturidade?

Esta é a questão: uma pessoa autônoma não é a que faz o que quer sem dar satisfação. É alguém que tem clareza das situações e assume a responsabilidade pelo que faz.

Liberdade de decisão

Infelizmente ainda há muitas situações de heteronomia, basta que você pense um pouco sobre os serviços prestados em hotéis, clinicas, lojas, repartições públicas. O tema é tão comum que é assunto recorrente nas universidades e chega a ser abordado pela literatura, pelo teatro e pelo cinema. Lembro-me de uma cena de um filme antigo, da década de 1960, chamado Bon Voyage!, protagonizado pelo veterano comediante americano Fred MacMurray. Ele interpreta um turista em visita a Paris que resolve conhecer os subterrâneos da cidade-luz, acompanhando um grupo conduzido por um guia local. Entretanto, traído por sua curiosidade, afasta-se do grupo e termina por se perder no emaranhado de galerias subterrâneas. Já em desespero, percebendo a noite chegar, encontra uma tampa de bueiro que ele poderia alcançar esticando bem o corpo. Coloca, então, três dedos através dos furos, na esperança de que esse pequeno e patético aceno fosse percebido por alguém. E, de fato, alguém vê os desesperados dedinhos em movimento frenético um guarda de trânsito parisiense, competente e orgulhoso. O policial comenta com seu colega e lhe pergunta o que eles devem fazer. O outro, então, sentencia:

Não vamos fazer nada. Não é de nossa conta, pois nós cuidamos do trânsito, do que está acima das ruas, e não do que está abaixo. Allez au travaille, mon collègue!

A cena pode ser engraçada, mas também é representativa da tragédia do descompromisso, justificado pela definição estanque de papéis. Heteronomia em estado puro. Au revoir!

Eugenio Mussak

Texto publicado pela Revista Vida Simples